Quando os mísseis balísticos rasgaram o céu em direção ao Atlântico não houve uma só pessoa na pequena cidade norte-americana que não parasse para contemplar o horizonte. Mais mísseis foram disparados e mais olhares se juntaram. Alertas soaram e poucos minutos depois várias armas nucleares detonaram nos Estados Unidos, ofuscando o horizonte, devastando árvores e campos e pulverizando prédios inteiros. É uma cena do filme The Day After (1983), mas poderia ter sido realidade não tivesse Stanislav Petrov, então um oficial soviético com 44 anos, decidido ignorar, em 1983, um falso alerta de lançamento de mísseis norte-americanos contra a União Soviética. Petrov, que ficou conhecido como «o homem que salvou o mundo», faleceu a 19 de maio deste ano, mas a notícia só agora foi divulgada. De uma forma ou de outra todas as vidas da humanidade estão, desde esse momento, ligadas à decisão de Petrov.
A manhã em que o mundo esteve à beira da terceira guerra mundial
Vivia-se então a Guerra Fria e as relações entre os Estados Unidos e a União Soviética degradavam-se a cada dia. O clima político era tenso entre as duas maiores potências nucleares – e o mundo estava em suspenso. Afinal, podia esperar-se tudo.
Nas primeiras horas de 26 de setembro de 1983 Stanislav Petrov, tenente-coronel do Centro de Deteção de Ataques Nucleares da União Soviética e responsável por uma imensa rede de radares, satélites, técnicos e analistas, recebeu um alerta de lançamento de um míssil norte-americano a dirigir-se para o seu país a 24 mil quilómetros por hora. O momento para que Petrov tinha sido exaustivamente treinado tinha chegado. O oficial pediu a confirmação da informação e os computadores comunicavam que a probabilidade da vialibilidade do alerta era «alta», embora os satélites de observação não conseguissem ver o míssil. Os minutos passavam e Petrov tinha de tomar uma decisão rápida para que a União Soviética pudesse reagir em tempo útil. «Um minuto depois a sirene voltou a tocar. Um segundo míssil tinha sido lançado. Depois um terceiro, e um quarto, e um quinto. Os computadores mudaram os alertas de ‘lançado’ para ‘ataque de mísseis’», explicou em entrevista à BBC em 2013. A pressão aumentava: «os segundos pareciam minutos e os minutos uma eternidade», descreveu. Petrov «apenas tinha de se mexer e pegar no telefone para comunicar em linha direta aos seus comandantes», mas, segundo explicou na mesma entrevista, «não se conseguia mexer», como se estivesse a «fritar numa frigideira» por causa dos nervos. O tenente-coronel pensou nas várias informações que possuía e suspeitou que os computadores e os seus algoritmos poderiam estar errados – eram outros tempos, dir-se-ia. Tomou a decisão de guardar a informação para si e para a sua equipa, não a comunicando aos seus superiores. «Tinha toda a informação [a sugerir que se estava perante um ataque norte-americano]. Se tivesse enviado a informação para cima através da cadeia de comando, ninguém a teria posto em causa», explicou. Petrov sabia que se reportasse o lançamento dos mísseis como o protocolo estipulava, seriam lançados, em poucos minutos, centenas de mísseis nucleares em direção aos Estados Unidos, provocando a terceira guerra mundial e matando milhões e milhões de pessoas. O soviético decidiu esperar. Passados vinte e três minutos apercebeu-se de «que nada tinha acontecido» e que se «tivesse havido um ataque real» saberia. Nessa altura, Petrov percebeu que, com o seu silêncio, tinha evitado a terceira guerra mundial.
Uma investigação posterior concluiu que Washington não tinha lançado qualquer míssil e que o alerta automático tinha sido disparado depois de um satélite espião soviético ter confundido um reflexo do sol nas nuvens com o brilho de um míssil.
Nos dias seguintes, o russo recebeu uma reprimenda dos seus superiores por não ter obedecido às ordens de transmissão de informações e o comando soviético abafou o caso, classificando-o de «ultra-secreto». O falso alerta demonstrava que o sistema de defesa soviético não era totalmente confiável, o que, num conflito como o da Guerra Fria, teria importantes consequências psicológicas, políticas e militares se fosse tornado público. A relação de forças da estratégia de dissuasão mútua assegurada ter-se-ia alterado desfavoravelmente para a União Soviética. Independentemente da repreensão, Petrov decidiu manter o silêncio por mais de dez anos e só falou novamente do caso depois do colapso do gigante soviético, em dezembro de 1991.
Algum tempo depois do falso alerta, a esposa de Petrov faleceu e o oficial pediu para se reformar das Forças Armadas. Desde essa altura que vivia num pequeno apartamento nos arredores de Moscovo. Ia buscar religiosamente os seus cheques de pensionista e, de tempos a tempos, era procurado por alguém que gostaria de ouvir a sua história, fosse por simples prazer ou para escrever algo sobre ela. O militar não se cansava de reforçar uma ideia que, para si, fazia todo o sentido. Todos os meus camaradas eram soldados profissionais e foram ensinados a dar e a cumprir ordens», dizia, explicando de seguida que, no seu caso, tinha recebido uma educação civil, mesmo que estivesse nas Forças Armadas desde os 17 anos. Por acaso foi Petrov a estar no comando naquela noite – talvez outro militar tivesse seguido o protocolo à letra e acionado o alerta. Não se considerava um herói, mas apenas um feliz acaso de ter sido a pessoa certa no momento certo a tomar a decisão certa.
Petrov veio, mais tarde, a ser elogiado e distinguido pelo Governo russo, além de ter recebido prémios internacionais, como o da ONU, por ter evitado um conflito.
Nos últimos anos de vida o oficial queixou-se que a sua presença neste mundo era apenas lembrada por aqueles 15 minutos em que a decisão que tomou foi a de «simplesmente não ter feito nada». A notícia da sua morte passou despercebida até que o realizador alemão Karl Schumacher, responsável por ter divulgado a história de Stanislav Petrov, tentou ligar ao ex-militar para lhe desejar o feliz aniversário e a família o ter informado de que este tinha falecido a 19 de maio. Schumacher anunciou a morte online e os meios de comunicação social pegaram novamente na história do «homem que salvou o mundo».
As armas nucleares ontem e hoje
O receio de uma guerra nuclear que aniquile toda a população mundial já não é tão grande como o era durante a Guerra Fria. Hoje, os receios tendem a focar-se nos programas nucleares norte-coreano e iraniano, bem como na possibilidade de organizações terroristas acederem a este armamento. Parece que o conceito de destruição mútua assegurada, que norteou as relações internacionais durante décadas, foi esquecido, quando antes era um dos temas discutidos no dia-a-dia por milhões de pessoas em todo o mundo sempre que as relações entre Washington e Moscovo se degradavam.
Apesar da estratégia da destruição mútua assegurada ter antecedentes que remontam a 1870, o público apenas tomou conhecimento dela depois da famosa crise dos mísseis de Cuba, em 1962, quando o mundo esteve à beira do confronto nuclear. Oito meses depois desta crise, o então secretário da Defesa da administração Kennedy, Rober McNamara, proferiu um discurso na American Bar Foundation em que elencou os elementos base da estratégia. Esta tinha como objetivo garantir que em caso dos Estados Unidos entrarem em conflito com o gigante soviético, ambos os Estados seriam totalmente aniquilados, dissuadindo, desta forma, quaisquer movimentações que pudessem originar um eventual conflito bélico direto. Na prática, a estratégia baseava-se em desenvolver ao máximo a quantidade de ogivas nucleares e mísseis balísticos para, caso a União Soviética atacasse, os Estados Unidos terem um arsenal suficiente para desferir os golpes seguintes, destruindo o seu rival. A resposta seria tão massiva e em tão poucos minutos que o inimigo saberia de antemão que, caso atacasse, sofreria uma «destruição assegurada». As armas nucleares e esta orientação estratégica criaram um novo medo entre as populações mundiais: a de serem aniquiladas numa questão de minutos com o pressionar de um simples botão a milhares de quilómetros de distância. «A questão principal é que o público não tinha controlo», afirmou Cristopher Laucht, professor de História na Universidade de Leeds à BBC. «Estava-se à mercê dos decisores políticos. Para além do medo de que um lado fizesse algo estúpido, também havia o medo da tecnologia e da questão ‘e se um acidente acontecesse’», explicou o professor. Tanto os Estados Unidos como a União Soviética investiram cada vez mais no desenvolvimento das suas capacidades nucleares, tentando ultrapassar-se uma à outra. Tornou-se comum dizer-se que os dois Estados tinham armas nucleares suficientes para destruírem o planeta Terra várias vezes. Em 1985, os Estados Unidos tinham mais de 23 mil ogivas nucleares e a União Soviética mais de 28 mil, para além de todo o armamento convencional.
No seguimento da crise dos mísseis cubanos, Washington e Moscovo encetaram conversações diplomáticas para diminuírem as tensões entre si, no que foi caracterizado como o «período de détente», na década de 70. Ainda assim, as relações entre as duas superpotências voltaram a degradar-se a partir do início da década de 80 com a eleição do republicano Ronald Reagan para presidente dos Estados Unidos. Reagan assumiu uma postura agressiva e dura em relação ao gigante soviético, favorecendo a competição e superação das suas capacidades militares estratégicas e globais, afirmando, inclusive, que a sua estratégia iria «escrever as páginas finais da história da União Soviética». O então presidente chegou até a caracterizar a União Soviética como «império do mal» em 1983 – precisamente o ano em que Stanislav Petrov recebeu o falso alerta. Por exemplo, e num laivo que nos poderia fazer lembrar o presidente norte-americano Donald Trump, Reagan afirmou no decorrer de um teste de som: «Meus caros concidadãos, estou satisfeito por vos poder dizer que hoje assinei legislação que irá banir a Rússia para sempre. Começamos a bombardear em cinco minutos». A declaração veio depois a ser divulgada, aumentando as tensões com o rival soviético.
Com a queda do Muro de Berlim, em 1989, e implosão da União Soviética, em 1991, a Guerra Fria terminou e o medos da população da aniquilação nuclear diminuíram significativamente. «O medo de uma guerra nuclear diminuiu parcialmente porque o risco decresceu significativamente com o fim da Guerra Fria», defendeu Nick Bostrom, diretor do Instituto Futuro da Humanidade da Universidade de Oxford.
Ainda assim, nos dias que correm, existem mais de 17 mil armas nucleares no mundo, sendo que a maioria se encontram sob controlo de Washington e Moscovo. Hoje, o nervo central do medo da sociedade já não se deve tanto à possibilidade de uma guerra nuclear – mesmo que as tensões na Península da Coreia estejam a marcar a agenda internacional –, mas sim com ataques terroristas, alterações climáticas, pandemias e crises económicas.