Celebrar o levantamento da proibição do usufruto de um direito básico nunca pode ser um gesto de satisfação absoluta. Num país como a Arábia Saudita, onde impera um dos regimes mais opressores dos direitos das mulheres, vitórias desta natureza são habitualmente encaradas pela comunidade internacional e organizações de direitos humanos como meros passos tomados num caminho para sociedades mais justas e equitativas. Foi precisamente essa a mensagem que o secretário-geral das Nações Unidas quis passar no Twitter, pouco depois de conhecida a decisão de Riade de autorizar as mulheres a conduzir. “Um passo importante na direção certa”, descreveu António Guterres.
A inédita resolução saudita viu a luz do dia num decreto assinado pelo rei Salman bin Abdulaziz Al Saud e faz parte do plano reformista “Visão 2030” – uma estratégia idealizada para reduzir a dependência da Arábia Saudita do negócio do petróleo através de uma diversificação nos setores da economia, infraestruturas, educação, saúde, turismo e lazer – concebido pelo príncipe herdeiro, Mohammed bin Salman. O decreto real prevê a constituição de um órgão ministerial de aconselhamento e aponta para a implementação da medida até ao dia 24 de junho do próximo ano.
Ainda que não seja líquido que a data de entrada em vigor da medida seja efetivamente em meados de 2018, a verdade é que as autoridades sauditas reclamam tempo para preparar logisticamente o país para a nova realidade. Por um lado, há que adaptar os atuais programas para que as mulheres possam ter a formação necessária e adequada para obter a carta de condução. Por outro, é preciso preparar as cidades do ponto de vista infraestrutural, face ao aumento previsto de tráfego rodoviário. E, por fim, é necessário desmantelar grande parte da rede de motoristas e taxistas da Arábia Saudita – calcula-se que existam, neste momento, perto de 800 mil motoristas no país exclusivamente contratados para transportar mulheres e que o custo mensal médio por habitação, relativo a tais serviços, se situa nos 1000 dólares (cerca de 850 euros).
A campanha contra a exclusão das mulheres no que toca à condução – um crime até agora punido com prisão e multas elevadas – tem várias décadas e originou alguns protestos coletivos no país, os mais impactantes em 1990, 2011 e 2013. A segunda data foi, aliás, a de consagração de um dos principais movimentos de ativismo sobre a matéria, o Women2Drive que, na sequência das manifestações pró-democracia que varreram o norte de África e o Médio Oriente, e que ficaram conhecidas como as “Primaveras Árabes”, subiu a fasquia na forma de consciencialização e reivindicação do direito das mulheres à condução na Arábia Saudita.
Não foram poucos os casos de ativistas detidas pelas autoridades depois de publicarem na internet vídeos e fotografias suas ao volante de um automóvel. Manal al-Sharif foi uma delas e a sua reação à decisão do rei Salman prenuncia que também ela quer mais do futuro. “A Arábia Saudita nunca mais será a mesma. A chuva começa com um pequeno pingo”, escreveu a ativista no Twitter.
Ventos de mudança
Faisal J. Abbas, diretor do jornal saudita de língua inglesa “Arab News”, também aplaude as portas que serão abertas daqui para a frente, mas entende que o crédito deve ir para o governo saudita e para a estratégia da “Visão 2030” que, destaca, “refreou os poderes da polícia religiosa”, “colocou mulheres sauditas em cargos de topo” do país e permitiu a “entrada de mulheres em estádios de futebol”. “Não devemos isolar esta decisão de uma série de rápidas reformas que transformaram literalmente vários aspetos do dia-a-dia no reino. [Ela] não deixa dúvidas de que o governo saudita sabe que não pode haver qualquer reforma sem envolver toda a sociedade (…), incluindo as mulheres”, defendeu Abbas, num artigo de opinião publicado ontem.
Ainda que os direitos das mulheres tenham vindo a amplificar-se nos últimos anos – a nomeação de mulheres para a Shura e a possibilidade de concorrerem e votarem em eleições municipais foram alguns dos avanços dos últimos anos, em matéria de direitos políticos -, a sociedade saudita continua a marginalizar o sexo feminino, muito por culpa da corrente wahabita sunita, espelhada na formulação e aplicação do direito no país. Tais regras discriminatórias incluem, por exemplo, restrições quanto ao vestuário a utilizar, a impossibilidade de associação ou de relacionamento com determinados homens ou a obrigatoriedade de uma autorização escrita de um membro masculino da família para trabalhar, viajar ou estudar.
Esta visão da sociedade é, naturalmente, defendida por grande parte da população e, em alguns casos, chega para sustentar tomadas de posição controversas. Não foi por isso de estranhar que o hashtag #saudiwomencandrive (“mulheres sauditas podem conduzir”) e as mensagens de apoio à nova medida, partilhadas nas redes sociais ao longo desta quarta-feira, tenham sido acompanhados de reações como “as mulheres não podem conduzir porque têm um quarto da capacidade cerebral dos homens”, dito por um reputado clérigo saudita, segundo a Al-Jazira, ou “as mulheres da minha casa não guiarão” – partilhado vezes sem conta nas redes sociais por árabes conservadores.
A Arábia Saudita é caso único no mundo no que se refere ao afastamento legal das mulheres da condução, pelo que não parece haver grandes dúvidas de que são de mudança os ventos que sopram na direção de Riade. Cabe à monarquia saudita decidir a velocidade com que essa energia de progresso irrompe pelo dia-a-dia dos seus súbditos.