Houve um dia em que os tanques soviéticos entraram na Checoslováquia. Esse dia foi terrível para um homem chamado Emil Zatopek.
Há checos admiráveis. Por exemplo: Jaroslav Hasék.
Autor de uma das obras primas da literatura do mundo: O Valente Soldado Shcveik. Absolutamente obrigatório!
Dizia Hasék: «Não há lugar onde seja mais fácil roubar do que em Praga. E, estivesse ele onde estivesse, ia ao mais fundo dos bolsos das pessoas e desaparecia sem ser visto».
Os soviéticos foram ao mais fundo dos bolsos de Emil Zatopek, a Locomotiva de Praga.
Em 1946, tinha a II Grande Guerra chegado ao fim, as forças aliadas estacionadas em Berlim resolveram organizar uns campeonatos de atletismo. A Checoslováquia tinha um único representante: marchou, orgulhosamente, na cerimónia de abertura, segurando a bandeira do seu país. Em redor do estádio, o público casquinava risadas imbecis: aporrinhava a sua figura esquelética, escanzelada.
Apepinavam Emil Zatopek!
Na prova de 5000 metros dessa espécie de olimpíada de trazer por casa, o escanzelado de Praga foi correndo, correndo, simplesmente correndo. Era aquilo que ele sabia fazer. Dava voltas à pista de cinza ultrapassando adversários e voltando a ultrapassá-los.
Havia 80 mil pessoas a vê-lo nessa tarde de Berlim.
Nunca mais o esqueceram.
Praga é uma cidade que parece recortada em cartolina colorida.
Os topos das igrejas erguem-se por cima das casas como se dedos infantis tivessem gasto o seu tempo nos rococós pontiagudos, aqui e ali desacertados na imperfeição própria de um trabalho de meninos.
Dezenas, centenas de igrejas. Recortes em escada a partir do rio, a crescer por cada uma das margens do Vlatva. São Nicolau, Nossa Senhora de Týn, São Francisco Serafim, São Venceslau, São Salvador, São Clemente.
E Emil! Emil Zatopek!
Depois de os tanques soviéticos terem esmagado as ruas de Praga, houve uma súbita oposição passiva.
As pessoas faziam-se tolas como o Valente Soldado Shveik.
Se um soldado soviético perguntasse alguma coisa, por mais simples que fosse, a resposta deveria ser tão intrincada como os infinitos labirintos de Kafka, tão grotesca como Gregor Samsa, de repente transformado num enorme escaravelho.
Até as tabuletas de indicações foram mudadas de lugar.
Não havia soldado soviético que se orientasse naquela praga de Praga.
Na Praça de São Venceslau, uma manifestação tomou forma.
Zatopek ia a passar, no seu passo firme. Chamam-no! Aclamam-no!
Era um homem simples, Zatopek.
Exigem-lhe que fale, a ele que não sabe o que dizer naquela situação; obrigam-no a exprimir-se, a ele que só quer correr dali para fora como fizera em Helsínquia, em 1952, vencendo os 5000, os 10000 metros, a Maratona.
Nunca ninguém como Emil Zatopek!
Ele solta a palavra que o há de prender: daí a pouco serão os Jogos Olímpicos do México, 1968, exige aos soviéticos que respeitem a trégua sagrada de Olímpia, condena a invasão, embaraça-se no pensamento e no discurso que lhe tolhe o pensamento.
Nesse tempo, Emil Zatopek era um arquivista cinzento de um ministério mazombo. Foi exonerado, erradicado do exército, proibido de residir em Praga.
Roubaram-lhe tudo. Até a dignidade.
Exila-se no noroeste do país, junto à fronteira alemã: Jachymov. Trabalha nas minas de urânio, empurra vagonetas, suja a farda de ganga coçada.
Ah! Que nome extraordinário: Emil Zatopek!
Seis anos mais tarde, os novos governantes de Praga, roubam-no outra vez: exigem-lhe que regresse à capital, servirá de exemplo para aqueles que se opuseram ao barulho sinistro das lagartas dos tanques soviéticos esmagando o empedrado matemático da Ponte Carlos.
«Há mais igrejas em Praga do que dias num ano», escreveu Ingvalt Unsted.
Zatopek poderia ter esfregado a pano as fachadas das igrejas de Praga.
Havia algo que ninguém, nem todos os ladrões de Praga, podiam roubar a Emil Zatopek – a popularidade. Foi varredor de ruas e gritavam o seu nome enquanto varria ruas. As pessoas debruçavam-se nas janelas para ver Zatopek esvaziar baldes de porcarias urbanas na sua dignidade de homem que aceitava as porcarias humanas. Erguia um caixote e estralejavam as palmas. Os seus companheiros de trabalho recusam-se a partilhar horários com ele, sentem-se diminuídos, assumem a vergonha de uma tirania que não é deles.
Jan Echenoz escreveu como ninguém sobre Emil Zatopek: «Um homem doce…».
E ele corria, na sua passada inconfundível e vitoriosa, na peugada das camionetas do lixo que percorriam as ruas de Praga com as suas mais de quatrocentas igrejas…