Ainda decorria o comício que encerrou a campanha do “sim” à independência, na sexta-feira, a poucos metros da Praça de Espanha em Barcelona – um ato que durou mais de quatro horas, com discursos e atuações dos artistas, em que participaram cerca de 75 mil pessoas, segundo a cadeia de televisão la Sexta – e já várias escolas das zona estavam ocupadas.
Mesmo junto à Praça de Espanha, 30 jovens ocupavam o pátio da Escola Francesc Macia. Um grupo jogava às cartas. O jogo escolhido era “o mentiroso”. Arnau garante que a escolha tinha em consideração as características de alguns governantes espanhóis. À pergunta quem vai ganhar o jogo no domingo, os jovens são prudentes, “não sabemos ainda quem vai ganhar. Só as urnas e os votos o podem dizer”. Para uma das jovens, no entanto, há outro trunfo: “o povo”.
Apesar de serem alunos da escola e autorizados a aí permanecerem, em poucas horas os Mossos d’Esquadra já lá tinham ido identificar os presentes. Enquanto estes falavam, iam chegando alguns habitantes das vizinhanças com comida para os “ocupantes”. O ato seguinte era um torneio de basquetebol, em que fui liminarmente vetado por Laia, Núria e Ares por usar botas, com ponta de aço, não regulamentares.
A poucas dezenas de metros, a polícia também já tinha ido visitar duas vezes a Escola Infantil Joan Pelegri. A programação garantia: observação de estrelas, gastronomia local, cinema e bailarico popular, tudo isso até domingo. Segundo um dos monitores da Escola Serge, já estavam no recinto escolar mais de 60 pessoas, e previa-se que mais de 150 vizinhos fossem aparecendo ao longo de sábado, para ajudar a provar uma chocolatada. A maior parte das pessoas já dormia, nos 37 colchões insufláveis oferecidos por uma comerciante local, enquanto outros discutiam as estrelas.
A chegada ao dia do referendo era uma autêntica batalha com golpes de imaginação para tentar garantir que no domingo do referendo da independência da Catalunha, a polícia não tivesse conseguido fechar os 2315 colégios eleitorais, 6249 mesas, previstas para servirem 5.343.358 eleitores. Quando o leitor chegar ao fim destas linhas já saberá parte do sucedido, mas, neste momento, em que escrevo, são 22 horas de sábado, e na avenida principal de Barcelona oiço o barulho das panelas a bater, dos carros a buzinar a apoiarem o referendo, com tem acontecido todos os dias desta semana. A revolta sonora só dura 15 minutos e depois desvanece-se no silêncio da noite. Neste texto só consigo contar os bastidores desta batalha que está a opor cerca de 60 000 voluntários que se inscreveram para ocupar muitos colégios da Catalunha – cerca de 172 estabelecimentos de ensino estão neste momento sob o seu controlo, segundo os meios de comunicação espanhóis – aos milhares de polícias destacados para esta região.
Depois do comunicado da Assembleia Nacional da Catalunha, a apelar para que se comemore o dia mundial da música: “no dia 1 de outubro se celebra o Dia Internacional da Música, por iniciativa da UNESCO, e que em toda a Catalunha vai haver atos celebratórios entre as 8 horas da manhã e as 20 horas, para todos os catalães. E aconselha-se a todos os cidadãos que se informem do local onde é previsto cantarem. Em todos os locais haverá partituras para todos. Depois de cantarem, devem deixar as suas partituras numas caixas feitas para o efeito, para saber quantos optam por Si Maior (trocadilho que dá para um “Sim maior”) ou por outros tons. E que a grande festa final do dia da música terá lugar na Praça de Catalunha, a partir do meio da tarde”.
Cerca de 60 mil pessoas inscreveram-se como voluntários, numa página de internet entretanto desativada, como foram desativadas pela polícia mais de 140 páginas web que defendiam o referendo. Nas redes sociais dos grupos de escolas divulgam-se atividades diversas que ocuparam o tempo até ao famoso dia do “Si Maior”, uma espera que ocorrerá de sexta-feira até domingo. Nesses centros, há vários programas, torneios de basquete, ver as estrelas, cursos de comida, voltas às escolas, jogos de xadrez, e até um instrutivo atelier de “como ser okupa em 72 horas, com verificação prática”.
Apoiantes de Espanha
No sábado às 17.30, foi a vez dos apoiantes da Espanha una e indivisível se manifestarem. Saem de uma praça central de Barcelona, a praça Urquinaona, até ao local da sede do governo autonómico. São vários milhares, cerca de três mil, muitas bandeiras espanholas, algumas catalãs. Jovens, gente da claque do Espanyol, e pessoas idosas. À passagem pelas instalações da Guarda Civil há um paroxismo de aplausos e de gritos : “Viva a Guarda Civil” e “Em Espanha não se vota”. Um das primeiras pessoa com quem tento falar, é um homem musculado e tatuado, que, informado da minha nacionalidade e profissão, lamenta não me poder responder, dado que está em trabalho, tem a tarefa de fazer “vigilância”. Simpaticamente, o homem de mais de 60 anos, enrolado numa bandeira espanhola com o brasão da monarquia que lhe parece ficar curta para tanta convicção, Xavier Campos, acede a explicar-me as suas razões: “Não podemos ficar mais calados. Nós somos a maioria silenciosa”.
Nesta rua, que dias antes estava cheia de bandeiras independentistas às janelas, está hoje descolorida e a maior parte das cortinas estão corridas. No meio do aplauso dos manifestantes, alguns habitantes colocam bandeiras espanholas, tomando desforra do que deve ter sido para eles, o voltear de estandartes catalães e republicanos na última semana. Xavier diz-se convencido na força das autoridades e sobretudo da Guarda Civil: “a ilegalidade deste referendo não vai passar” e o que é preciso é expulsar os independentistas do governo”. “Precisamos de governantes que não queiram destruir Espanha”. Confessa-se um votante de Ciudadanos, que “é um partido novo que ainda não está corrompido”. Nas ruas ouve-se cantar: “Que viva Espanha” e gritos entusiásticos “Puigdemont [presidente do governo catalão] para a prisão”. Chegados à Plaza de Sant Jaume, sede do governo autonómico, um pequeno grupo cantou o hino franquista “Cara al Sol”: “Volverá a reír la primavera, que por cielo, tierra y mar se espera. ¡Arriba, escuadras, a vencer, que en España empieza a amanecer!”.
O momento de realismo mágico desta manifestação foi quando um homem negro, transportando a bandeira do Biafra, episódico país de África que durou cerca de três anos, passou no sentido contrário da manifestação. O homem recusou-se a dizer o nome, apenas me explicou num castelhano bastante melhor do que o meu, que “num tempo em que toda a gente se expressa por bandeiras, esta é a minha”. Antes tinha havido uma manifestação a favor daquela região da Nigéria.
Um pouco por toda a Espanha multiplicaram-se manifestações contra e a favor do referendo catalão. Sendo sem surpresa a sua distribuição regional e tamanho: milhares manifestaram-se contra o referendo “ilegal” em Madrid, cerca de 10 mil, segundo o “El País”, que titulava: “Milhares de pessoas saem Às ruas por toda a Espanha para defender a unidade”; e outros milhares, segundo o “La Vanguardia”, manifestaram-se a favor dos independentistas catalães nas cidades do País Basco e Galiza, como em Bilbau e Santiago de Compostela.
Uma contabilidade rigorosa que está longe de estar garantida, pelo menos a nível do número de bandeiras catalãs que anseiam por ser contabilizadas. A polícia espanhola ocupou as instalações informáticas e os centros de comunicação sob a alçada do governo da Catalunha, para impedir que possa ser usada a votação eletrónica e recontados e somados os votos da totalidade das mesas da Catalunha. Fontes do governo catalão temem que a internet possa vir e ser cortada, para impedir a divulgação de quaisquer resultados nas redes sociais. Para além das proibições legais, o governo de Madrid não quer que haja um rasto ou uma sombra de um número que possa clarificar quantos são os catalães que querem ser independentes. Proibidas as imagens aéreas durante as votações, tomados os centros de comunicação, é possível que o dia vá ter um silêncio demasiado ensurdecedor.