Meca dos sabores na Europa, San Sebastián concentra uma quantidade impressionante dos melhores restaurantes do mundo. No que toca à densidade de estrelas Michelin por metro quadrado, apenas é ultrapassada por Kioto, no Japão. Por isso, a cidade basca merece uma referência incontornável em Michelin Stars – Tales From the Kitchen, o filme do dinamarquês Rasmus Dinesen que abriu a sugestiva e cada vez mais popular secção Culinary Zinema, do 65.º Festival de San Sebastian, dedicada ao palato e aos sentidos.
Provavelmente mais popular graças às sumptuosas iguarias do que propriamente por indicações de estrada, o Guia Michelin converteu-se numa espécie de Bíblia Sagrada do Olimpo da alta cozinha. Para muitos chefs, a obtenção de três estrelas Michelin é o sonho de uma vida. Sendo que o oposto, uma crítica negativa ou a perda de uma estrela, pode ser trauma difícil de ultrapassar.
Daniel Humm, Alain Ducasse, René Redzepi, Andoni Aduriz, Yoshihiro Narisawa, Victor Arguinzoniz ou Guy Savoy são alguns dos magos da cozinha mundial que participam no requintado e calórico documentário de Rasmus Dinesen sobre o guia que começou por ser uma operação de marketing para… vender pneus.
Nos primeiros anos de 1900, os manos Michelin, produtores de pneus em Clermont Ferrand, encorajaram os proprietários de automóveis – na altura menos de 4 mil, informa o filme – como forma de aumentarem as suas vendas de pneumáticos. Na altura em que não existiam ainda estações de serviço, oficinas ou mesmo estradas propriamente ditas, apenas caminhos. À medida que o progresso se foi impondo, também o guia foi sendo enriquecido com conselhos e pistas de bons locais para comer.
Pressão, paixão e sensações
Andoni Luis Aduriz sabe bem disso. Desde 1998 que colocou no mapa o restaurante Mugaritz, um verdadeiro palácio de sensações e alvo dos mais prestigiados prémios, atualmente duas estrelas Michelin. Para este cozinheiro de 46 anos, que descobriu a sua vocação quando trabalhava numa pizzaria, a gastronomia engloba todo o conhecimento, tensões, obsessões do mundo e do ser humano. O seu restaurante situa-se numa casa rústica a cerca de 15kms do centro da cidade e só abre durante nove meses – entre janeiro e meados de abril a sua equipa de pesquisa e desenvolvimento colabora com os chefs para criar cerca de 60 pratos diferentes. Assim traçam os objetivos para os próximos nove meses e definem uma filosofia de vida à volta do seu menu fixo de 180 euros.
Para Aduriz, cozinhar rima com provocação. «Nem sequer gostamos de nos considerar um restaurante, preferimos a ideia de criar novas experiências e sensações», avisa. «Para isso fornecemos as ferramentas para que o cliente desfrute dessas experiências íntimas».
É também assim no parisiense Plaza Athénée, onde o menu de almoço custa 210 euros. «Aqui não há pressão, só paixão», desabafa Alain Ducasse, que é perito em usar a química na alimentação, transmitindo calor ou frio para melhorar o sabor do alimento. Ou no Eleven Madison Park, o famoso restaurante dirigido por Daniel Humm, que ocupa todo um quarteirão de Manhattan. Humm confessou perante a câmara que uma crítica – segundo a qual faltava à sua gastronomia algo de Miles Davis – alterou todo o seu conceito. E foi a imersão na música variada deste jazzman que se transformou na inspiração e novo rumo que o ajudou a receber a sua terceira estrela Michelin. «É um esforço contínuo», confessa Humm, «mas o Miles tem estado sempre lá para nos guiar».
Mas nem tudo são rosas neste documentário sobre o meio ultraexigente da mais alta cozinha. Também há drama. Como o de quem perde uma estrela. «Tivemos de retirar 25 mesas quando isso aconteceu», refere um chef desolado. Os critérios para as estrelas passam pela mestria de cozinhar, a harmonia dos sabores, a consistência do menu e a forma como o chef projeta nos pratos a sua personalidade.
Pelo meio, há quem siga estes mestres até ao fim. Como o comensal austríaco que confessa no filme já ter ido mais de 20 vezes ao Mugaritz e a quem faltavam, à data, apenas alguns restaurantes para fazer o pleno das três estrelas. Um objetivo que cumpriu antes de terminado o filme.
Não saímos desta viagem sem um amargo de boca ao perceber o lado mais negro do mundo das estrelas Michelin . Alguns chefs ultrapassam largamente a sua capacidade de entrega e resistência e acabam por cometer suicídio.
José Carlos Capel, crítico de gastronomia do El País e considerado o ‘papa’ da religião de bem comer, assinala a ligação menos conhecida entre as estrelas concedidas a um país e a respetiva cifra de negócio. No entender de Capel, existe mesmo uma relação direta entre o número de estrelas e a venda de pneus. É o poder da borracha na magia da cozinha.
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