O Arquivo Histórico é um dos polos menos visíveis da atividade da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML), mas não deixa de ter, por isso, uma importância fundamental no ADN da instituição. Para o Provedor é, aliás, fácil de definir o Arquivo – “é o guardião da nossa identidade” – resume Pedro Santana Lopes, até porque um arquivo com mais de quinhentos anos de História tem muito para mostrar.
Aqui guarda-se, por exemplo, um bilhete da primeira lotaria da Misericórdia. A título de curiosidade, a lotaria da Santa Casa foi instituída pelo decreto de 18 de novembro de 1783, e as receitas deveriam ser distribuídas, em partes iguais, pela Academia de Ciências de Lisboa, pelo Hospital de São José e pela “Casa dos Expostos” da mesma cidade. A primeira extração teve lugar em setembro de 1784.
Entre os inúmeros documentos conservados no Arquivo Histórico, destacam-se, entre outros, os sinais dos expostos e as autênticas de relíquias.
Sinais dos Expostos Há dois anos que uma equipa de quatro elementos se dedica, a tempo inteiro, a descrever estes documentos, que não são mais do que pequenos objetos, como têxteis, bilhetes manuscritos e até madeixas de cabelo, deixados junto dos expostos, ou seja recém-nascidos entregues à instituição. Estas crianças não eram necessariamente órfãs, sendo entregues, sobretudo, porque a família não tinha recursos económicos.
Neste momento, a SCML está a ultimar uma candidatura a “Registo da Memória do Mundo”, galardão atribuído pela UNESCO, equivalente a Património da Humanidade, mas para documentos. Nesse sentido, está a ser descrita a totalidade de sinais guardados no Arquivo, verdadeiro testemunho de tempos difíceis, em a instituição acolhia estas crianças. Um trabalho rigoroso e necessariamente demorado, iniciado há dois anos. “Há crianças expostas desde o final do século XV/XVI, e nós só temos sinais desde 1790. No entanto, a partir desse ano e até 1926, existem cerca de 87 mil sinais. Isto revela que existia um número muito significativo de crianças expostas, até porque nem todas entravam com o sinal mesmo dentro desse período”, explica Nelson Moreira Antão, responsável pela normalização da descrição dos sinais.
No final do processo, os registos serão disponibilizados online. Para Nelson Moreira Antão, este conjunto de sinais é muito revelador, quer das carências da sociedade, quer do tipo de resposta dado pela SCML, que assegurava todas as necessidades dos expostos. “Toda a criança que dava entrada na Misericórdia era logo registada e batizada”, conta. “Muitas crianças morriam logo no primeiro ano”, explica o técnico do Arquivo, recordando as elevadas taxas de mortalidade infantil da época. “As que sobreviviam eram entregues a amas que as criavam”, sobretudo na zona Oeste, “longe do ar pesado da cidade”. O Arquivo Histórico mantém o registo de todas as crianças enjeitadas, desde a sua entrega até à emancipação. Guardou, também, os sinais que agora constituem um importante documento histórico.
Muitos destes documentos não eram uma nota de despedida. “Havia pessoas que, de facto, entregavam a criança ao cuidado de uma instituição, por a considerarem idónea para proceder à sua criação, mas sempre com a possibilidade de a recuperarem mais tarde”, desde que as condições económicas da família o permitissem. Era, no entanto, muito raro uma família tentar reaver a criança enjeitada, quer pela elevada taxa de mortalidade, quer pela reabilitação da própria família.
Para Nelson Moreira Antão há lições a tirar da história dos sinais. “Penso que nos ensina que, apesar de todas as vicissitudes que a vida nos pode trazer, falta de recursos económicos, contrariedades da vida, morte de alguém, existe sempre uma luz ao fundo do túnel e sempre alguém, neste caso uma instituição idónea, que nos pode ajudar neste percurso”. E, embora se tratem de documentos históricos, os sinais dos expostos continuam a trazer uma carga emotiva a que o técnico não é imune. “Lembro-me de um sinal escrito que dizia, numa letra muito tosca: ‘esta criança viu a luz do mundo em tantos de tal’. Mesmo quem sabia escrever, redigia com erros; por isso, acho incrível surgir uma frase tão poética”, recorda, juntando ao lote de sinais ‘especiais’ “os que têm o cabelo da mãe, cabelo com duzentos anos, atado com uma fita”.
As autênticas de relíquias A par dos sinais dos expostos, o Arquivo Histórico guarda outro tesouro inestimável – as autênticas, documentos que, como o nome indica, confirmavam a autenticidade das relíquias dos santos.
Se no Museu de São Roque e também na Igreja há uma das mais importantes coleções de relicários do mundo, no Arquivo Histórico são guardados estes documentos, com a chancela da autoridade eclesiástica. Uma coleção rara, relembra Margarida Montenegro, diretora da Cultura da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa: “há muitos museus que têm coleções de relíquias, mas não têm as suas autênticas”. E quem sabe se, um dia, não estarão expostos ao público, ao lado das relíquias que autenticam.