O jornalista e antigo diretor do “La Vanguardia”, atualmente diretor do site de informação catalão mais influente, El Nacional, acha que o processo para a independência é irreversível, mas que, provavelmente, terá de ser confirmado num novo referendo negociado com Madrid. A força dos catalães e a sua vontade e determinação de obrigar Madrid a ceder e a conversar vão ser medidas hoje durante a greve geral convocada por sindicatos, associações patronais e movimentos sociais. Isso vai ser mais um passo para conseguir convencer o governo espanhol.
Depois do dia de 1 de outubro não está ainda mais difícil sentar à mesa das negociações catalães e Madrid?
O governo de Madrid nunca quis sentar-se à mesa com o governo da Catalunha. Não quis conversar sobre um acordo fiscal, não quis negociar um referendo de comum acordo. Parece-me ainda mais difícil que aceite discutir a independência da Catalunha. O presidente da Generalitat [governo da Catalunha] passou a bola para a União Europeia e pretende que ela faça a mediação entre Barcelona e Madrid.
Mas isso não é uma espécie de pensamento mágico? A União Europeia sempre apoiou a posição do governo espanhol.
É verdade, é quase impossível, porque até agora a UE deu apoio a tudo o que disse o governo de Mariano Rajoy, afirmando sempre que isto era um problema interno de Espanha que tinha de ser resolvido no âmbito da Constituição espanhola. No dia 1 de outubro produziu-se uma pequena alteração: o primeiro-ministro belga e o da Eslovénia afirmaram que, depois daquilo que tinha sucedido na Catalunha, as coisas tinham de se resolver politicamente. Esta posição é muito minoritária no seio das instituições europeias, por que razão é tão minoritária? Porque aquilo que hoje sucede na Catalunha não é um problema para a Europa. Mas se isto continua a agravar-se, como está a acontecer, pode facilmente tornar-se também um problema para a UE.
De que forma? A UE tem convivido bem com situações de autoritarismo, na Hungria e na Polónia, por exemplo.
Mas quanto tempo pode a UE aguentar e permitir que uma região economicamente poderosa em Espanha esteja numa situação de permanente tensão? Isso pode aceitar-se durante três meses, seis meses, nove meses ou um ano. Mas chegado a este extremo de uma Europa que se recuse a mediar o conflito entre a Catalunha e o governo de Madrid, poderá haver partidos que na Catalunha comecem a defender que é necessário fazer uma declaração de independência unilateral do país. E que não temos de estar na UE e, se calhar, mesmo do ponto de vista económico, estaríamos melhor fora da UE. Começa a haver economistas que defendem essa posição.
Como sabe melhor do que eu, há um espaço das leis, mas fora dele existe o pressuposto de uma força para as impor ou até para as alterar. Espanha tem força militar e policial para isso. Qual a força dos independentistas da Catalunha neste conflito?
Por isso o caminho da Catalunha é tão complexo e diferente. É um processo que pretende atingir a independência sem recurso à violência. Por isso, os aliados mediáticos são muitos, e os aliados políticos poucos.
Não é mais fácil fazer cair Rajoy no parlamento espanhol e reabrir um processo de negociação com os catalães e outras nacionalidades sobre a forma de integração em Espanha?
A Catalunha não aceitará nunca voltar à situação de partida. Quando digo Catalunha, falo da maioria que a governa neste momento. Se se produzisse um governo alternativo, as coisas poderiam ser, naturalmente, diferentes. A Catalunha não vai aceitar nunca voltar a uma Espanha das autonomias, isso não vai acontecer.
E qual será a reação provável do Estado espanhol ao 1 de outubro?
Será provavelmente a suspensão da autonomia, usando o artigo 155, podendo chegar à prisão do presidente do governo, Carles Puigdemont.
Isso pode ser executado facilmente?
A suspensão da autonomia é uma coisa que pode ser muito rápida.
Não precisa de um consenso político alargado que inclua PP, Ciudadanos e PSOE?
Uma questão é a legal. A lei diz que esta medida é tomada pelo senado, onde o PP tem maioria sozinho. Outra coisa é a capacidade de ter força política para a executar: o PP conta com o Ciudadanos, mas não acredito que o PSOE apoie este tipo de medidas. O facto de a lei determinar que colocar em vigor o artigo 155 da Constituição, que suspende a autonomia, é uma decisão do Senado não significa que depois haja força política para manter o governo. No parlamento, Ciudadanos e PP não têm maioria.
Isso é dar um quadro de inteligência tática ao PP de Rajoy que a forma como as forças da ordem reprimiram na Catalunha não parece ter.
O pior que pode acontecer à Catalunha neste momento é a suspensão da autonomia e a prisão do presidente do governo catalão. Mas em algum momento teriam de convocar-se novas eleições para a Catalunha. Poderia demorar dois ou seis meses, mas não é credível que, pura e simplesmente, deixasse de haver essas eleições. Nestas eleições, mesmo que convocadas pelo governo espanhol, a atual maioria que está no governo catalão sairia reforçada. A questão não se resolveria por magia. Uma das coisas que o governo espanhol tem tentado é pensar que este problema desaparece com o tempo. Ora, isso não vai suceder. A única forma de resolver o problema é fazer um referendo negociado como aconteceu no Quebeque ou na Escócia. A posição catalã não é uma posição de força, mas é uma posição de resistência que envolve pelo menos metade da população da Catalunha. Para uns é de 48% e para outros é de 52% mas, de qualquer forma, implica que uma parte significativa da população não desistirá até que haja essa possibilidade de se pronunciar sobre a independência. É preciso dizer que todos os estudos de opinião garantem que mais de 80% dos catalães estão de acordo que tem de haver esse referendo.
A questão é que o Estado espanhol não faz isso, não é por mera caturrice. Até podia prever, antes do 1 de outubro, que ganharia provavelmente esse referendo na Catalunha, mas ao abrir a caixa de Pandora teria certamente bascos, galegos e valencianos a marcarem referendos.
Por isso a situação é tão complicada. Acresce ainda um dado importante: este nacionalismo espanholista radical dá uma posição de pouca força ao PP na Catalunha, mas rende-lhe muitos votos noutros locais do Estado espanhol. Por outro lado, o mesmo não acontece com o PSOE, que só pode ter a pretensão de substituir o PP no governo se for muito forte na Catalunha. Para isso acontecer, tem de ser sensível às reivindicações da sociedade catalã. De alguma forma, a situação é muito mais fácil para o PP: sacrifica a Catalunha e ganha a Espanha; para o PSOE, a coisa é muito mais complicada – se sacrificar a Catalunha, nunca conseguirá governar a Espanha.
E para outros ainda é mais difícil, para o Podemos: muitos dos seus votos vêm daqui.
Daqui ou de Valência e da Galiza, sítios que não são iguais à Estremadura. Por isso, a situação é muito complexa: de um lado temos o governo espanhol, que tem a força, e, do outro lado, o catalão, que tem as pessoas e, sobretudo, a narrativa. Ao governo espanhol nada mais resta do que a narrativa da história da força, a Constituição e a repressão; o governo catalão, que é a parte mais fraca do conflito, tem ao seu lado uma ideia compartilhada, por muita gente, de trazer um projeto novo que conseguiria melhorar a sociedade e muitos dos seus problemas.
Mas como é possível conseguir uma solução dialogada quando a comunicação social em Espanha e na Catalunha parece retratar dois planetas completamente diferentes?
Tocou num dado muito importante. Como se pode entender que a imprensa internacional, a suíça, a do Canadá, a dos países nórdicos, a CNN veja com mais rigor o que sucedeu ontem [domingo] do que a imprensa de Madrid? Como pode ser? E o mais grave é que não há pluralidade. Toda a imprensa de Madrid afirma que o governo catalão está a fazer um golpe de Estado e que é necessário restabelecer a legalidade. Este pensamento único não se encontra na imprensa internacional. Esta manhã tive uma conversa com o jornalista do “Bild” que está cá a cobrir os acontecimentos. Os jornais alemães não são favoráveis à independência da Catalunha e o “Bild” é, de todos, o que parece menos favorável. Mas esse jornalista estava surpreendido com o grau de violência a que assistiu. Não é a primeira vez que a polícia utiliza aqui um grau grande de violência, nomeadamente contra os movimentos sociais, e isso aconteceu também noutros países em relação a manifestações anticapitalistas ou contra o G8, mas violência em relação a eleições internas não se vê na Europa.
E o poder judicial parece aqui demasiado ligado ao poder político.
É verdade. Quando cá chegam alemães, como o jornalista do “Bild”, ou pessoas de outros países da Europa não acreditam no que veem. Esta situação só é comparável com alguns dos regimes totalitários. Aqui, as notícias judiciais sabem-se primeiro nos jornais. Uma das coisas de que todos somos culpados foi pensar que, pelo simples facto de se ter eleições, instituídas depois da transição, isso significava a democracia. As eleições fazem parte da democracia, mas não são a sua totalidade. Em Portugal fez-se uma revolução e isso obrigou a fazer um corte com a ditadura. Aqui fez-se uma transição doce, sem culpados, de modo que os tribunais mantiveram-se os mesmos do franquismo. Isso e muita coisa. Com o passar do tempo e das gerações, percebeu-se que coisas que não foram devidamente tratadas, nem avaliadas, como as vítimas e o que sucedeu na Guerra Civil Espanhola, porque não houve uma rutura, começaram a vir ao de cima.
O que prevê para os próximos tempos?
Penso que vai ser um processo que demorará tempo. Mesmo que o parlamento proclame uma república, isso não se faz automaticamente. Não vai haver uma república nem em outubro nem em novembro. Será apenas um passo mais nesse sentido. O processo é irreversível, pelo menos em relação ao estabelecimento de um referendo negociado. Em algum momento, a resistência espanhola cairá pelo seu próprio peso. Se amanhã os deputados espanhóis aceitassem fazer uma comissão para um referendo negociado, acredito que o governo catalão o aceitaria.
Menos a CUP, que acharia que isso significa anular o esforço daqueles que votaram a 1 de outubro.
Para a CUP, isso seria não ligar ao que aconteceu ontem. Mas a sociedade catalã sempre teve vontade de negociar. O problema é que ninguém quis até agora negociar com os catalães. É muito provável que se se fizesse um referendo, antes do que sucedeu ontem, o independentismo não ganhasse. Não é obrigatório, mas provável. Não sequer “abrir o melão”, porque depois de um referendo pode vir um segundo e um terceiro. Mas é perfeitamente negociável que se faça um referendo com regras que admitem que só se aceitará um resultado se tiver mais de 55% de pessoas a votar a saída, com uma participação de mais de 65%, e que não se poderá fazer outro no espaço de dez anos. Tudo é negociável numa mesa de negociações; sem essa mesa é que é impossível fazer qualquer acordo.