É difícil não olhar para a montanha de obstáculos que Theresa May foi obrigada a escalar durante a intervenção desta quarta-feira no congresso do Partido Conservador sem fazer um paralelismo com o seu percurso à frente dos destinos do Reino Unido. A líder partidária que perdeu a atenção das câmaras com a interrupção de um comediante, que batalhou com um violento ataque de tosse e que, ao mesmo tempo que apregoava o “fortalecimento” das suas propostas, viu cair duas letras do slogan do encontro, afixado no cenário, e sobreviveu, retratou de forma sublime a primeira-ministra que, na sua missão de levar os britânicos ao Brexit, enfrentou a oposição, o parlamento, os tribunais, os (péssimos) resultados eleitorais e a desconfiança europeia, mas que, mesmo assim, se mantém como inquilina do nº 10 de Downing Street.
A brincadeira de Simon Brodkin – um comediante britânico, também conhecido por Lee Nelson, que já tinha protagonizado o célebre lançamento de dólares contra o ex-presidente da FIFA, Joseph Blatter, no auge das suspeitas de corrupção na organização – foi mesmo o momento mais insólito do discurso de May e o que criou mais dificuldades à líder do executivo na hora de recuperar a atenção da audiência. O “invasor” conseguiu aproximar-se do palanque onde a primeira-ministra discursava, entregar-lhe um formulário P45 – utilizado para fins de tributação e referente à cessação de um contrato de trabalho – e brincar com a suposta má relação entre May e o ministro dos Negócios Estrangeiros, Boris Johnson. “O Boris pediu-me para lhe entregar isto”, explicou Brodkin, antes de se dirigir diretamente ao chefe da diplomacia britânica e receber a atenção de praticamente todas as câmaras e máquinas fotográficas da sala.
A sequência de episódios bizarros mereceu, naturalmente, o destaque da comunicação social britânica e houve até quem se tenha servido dela para tirar conclusões agoirentas sobre o futuro da primeira-ministra. Como é o caso do “Independent” que, através das linhas redigidas pelo jornalista Andrew Grice, defende que “o discurso foi tão mau que pode vir marcar o fim da carreira” de May. Laura Kuenssberg, editora de política da BBC, não foi tão longe, mas comparou a “fragilidade de saúde” demonstrada pela discursante – terá estado engripada durante a semana – com a “fragilidade política” que a mesma já carregava aos ombros antes de subir ao palco e protagonizar um momento verdadeiramente “embaraçoso”.
Tirando o folclore, Theresa May apresentou propostas, nomeadamente em matéria social. Quem sabe se aproveitando o facto de o congresso se realizar em Manchester, um dos principais bastiões do Partido Trabalhista, a primeira-ministra comprometeu-se em “renovar o sonho britânico”, e garantir “uma vida melhor para as novas gerações”, apresentando uma série de medidas sociais para os próximos anos.
Prometeu intervir no mercado energético, através do estabelecimento de um preço limite para o consumo de mais de 17 milhões de famílias, comprometeu-se em investir 2 mil milhões de libras (cerca de 2,25 mil milhões de euros) no setor da habitação e ainda anunciou a revisão do Mental Health Act, a legislação que cobre a identificação, assistência e tratamento dos que sofrem de distúrbios mentais. Para além disso, May garantiu ainda que o governo tory vai pressionar quem de direito para garantir justiça para todos os que ficaram feridos, perderam familiares e tiveram prejuízos materiais no terrível incêndio da Grenfell Tower de Londres, em junho.
Polémica com Boris
Quarta-feira ficou igualmente marcada pela revelação de comentários polémicos do ministro dos Negócios Estrangeiros, numa reunião mais restrita realizada durante o congresso conservador. Boris Johnson defendeu que a cidade líbia de Sirte – reconquistada recentemente ao grupo terrorista Estado Islâmico – tem potencial para se tornar no “novo Dubai” e defendeu que, para atingir esse estatuto, basta-lhe “limpar os cadáveres” das ruas.
As palavras de Johnson motivaram duras reações de diversos tories. Através do Twitter, Heidi Allen catalogou-as como “100% inaceitáveis” e pediu a demissão do secretário de Estado. “Ele não representa o meu partido”, escreveu a deputada. Uma outra parlamentar, Sarah Wollaston, exigiu ao ministro um pedido de desculpas e, citada pela BBC, disse que os seus comentários foram “grosseiramente insensíveis e desapontantes” .
Boris Johnson também utilizou o Twitter para refletir sobre a sua intervenção e defender que se referia a uma “realidade em que a retirada dos corpos dos combatentes do Daesh está a ser dificultada por IED [bombas artesanais] e armadilhas”. “É por isso que o Reino Unido está a desempenhar um papel chave na reconstrução (…) da Líbia”, lembrou, sem, no entanto, se retratar.