Não existem números concretos, mas ativistas defendem que milhares de filhos e filhas de imigrantes que nasceram em Portugal não possuem nacionalidade portuguesa. Uma situação que se tem vindo a arrastar desde a década de 80 e que tem contribuído para discriminar cidadãos que deveriam ter plenos direitos e deveres na sociedade, defende a Campanha por outra Lei da Nacionalidade, conglomerado de coletivos e associações. A Campanha propôs-se a lutar pela alteração da actual lei da nacionalidade, defendendo o princípio do ius soli em vez do ius sanguinis. Há meses que o movimento tem recolhido assinaturas e hoje entregá-las-á à Assembleia da República para que o assunto seja debatido em plenário.
O i falou com Anabela Rodrigues, mediadora cultural na Associação Solidariedade Imigrante e ativista do Grupo Teatro do Oprimido de Lisboa, organizações que integram a Campanha.
Durante meses avançaram com uma campanha para se alterar a Lei da Nacionalidade. Que mudanças pretendem?
Tem a ver com o princípio, não é? Nós estamos assentes no princípio uis sanguinis sobretudo, embora depois em consonância com alguns do ius soli, mas o que nós queremos mesmo é o ius soli. Quem nasce em território português é português ponto final. É isso que nós pretendemos e a mudança que nós queremos, que até agora não foi feita, apesar da última alteração [em Julho de 2016]. Continuamos a achar que o ius soli é aquilo que é justo, principalmente se tivermos em conta as mudanças que aconteceram desde 1981. Temos muitos filhos e filhas de imigrantes nascidos em território nacional que não puderam ter a nacionalidade e que por causa disso ficaram abandonados pelo caminho.
O parlamento aprovou em julho alterações à Lei da Nacionalidade. Porque é que acham que é insuficiente?
Exatamente por não assentar no ius soli, mas num princípio consanguíneo. Por outro lado, só permite que se possa ter a nacionalidade em território a partir de e se, não é? A partir do momento em que adquira os 18 anos, que possa pedir por mim própria, não tenha saído do território nacional aos 18 anos, se os meus pais tiverem cinco anos legais em território nacional, se os meus pais conseguirem os cinco anos mais tarde, se eventualmente concluir o primeiro ciclo de estudos aqui, se eventualmente os meus pais tiverem ou quiserem pedir a nacionalidade. Não há à partida uma conexão directa. É sempre o “se” e o “talvez mais tarde”.
Como entendem as posições dos vários partidos com assentos parlamentares relativamente às alterações à lei aprovadas e ao vosso projecto?
Primeiro basta olhar para dizer que não há uma alteração profunda, embora a maior tenha ocorrido 2006, mas a lei continua ainda assim a basear-se num princípio de 1981. Quer dizer que aquele país de 1981 ainda se mantém. A lei não rompe de todo com esse princípio e com a injustiça que existe desde 1981, porque a verdade é que antes desse ano vigorava o ius soli na sua plenitude, ou seja, quem nascia em território nacional era português e um cidadão de plenos direitos. É isso que não existe e pelo qual lutamos.
Quem o sente na pele sabe perfeitamente esta diferença. Os partidos, exceptuando o Bloco de Esquerda, que pedia realmente o ius soli, não concordaram em pequenas nuances, apesar de uma maioria supostamente sustentar o governo. Ninguém está disposto à partida a aceitar o ius soli. A lei é injusta porque logo que uma criança nasce numa maternidade a mãe ou o pai têm de responder à pergunta da pessoa do registo civil: “qual a vossa nacionalidade?”. O futuro da criança pode ficar condicionado conforme a resposta dos pais. Se vai ter ou não um averbamento, se os pais são ou não de nacionalidade portuguesa. Quando são de nacionalidade portuguesa nada acontece, mas quando não o são indica-se que o pai é de nacionalidade cabo-verdeana, ucraniana ou estrangeiros – e a partir daí significa que ele é um estrangeiro nascido em território nacional. Nasceu em território português, mas se os pais estiverem irregulares apenas terá título de residência se estiver a frequentar o pré-escolar, o que significa que, mais uma vez, dependerá da situação dos pais quando ele não veio de lado nenhum. Nasceu em território português e provavelmente vai crescer neste território dependendo de uma situação da qual não tem culpa. Costumo dizer que Donald Trump tem todos os defeitos que apontamos, mas pelo menos isto ainda não mudou: quem nasce em solo norte-americano é norte-americano. É toda esta situação que continuamos a achar que é uma total injustiça.
Quantas pessoas se encontram nessa situação?
Não temos dados estatísticos. É interessante, não é? Posso falar daquilo que é a minha vida pessoal e profissional, do universo com o qual trabalho, e se não disser que é quase 90% estaria a mentir. É uma grande maioria e encontramos em várias famílias um irmão ou irmã, se não o próprio. Dentro do Grupo do Teatro do Oprimido, os DRK, o espetáculo que eles criaram com foi o "Sonhos de Papel", que é a realidade deles. São estrangeiros nascidos em território nacional entre 1986 e 1990. Um ainda não tem [nacionalidade portuguesa] e os outros todos pagaram para a ter. A Elisa tem aos 18 anos, a Sofia tem aos 22 anos, o Reginaldo tem praticamente 30 anos e ainda não a tem. Não a tem por uma questão: “Eu quero tê-la porque a lei mudou e por ter contribuído para isso. É para isso que faço teatro. Represento este país por alguma razão". Não estamos a falar de uma situação de quem nasceu há dois ou três anos, mas de uma situação histórica que faz com que as pessoas da década de 80, 90 e alguns até de antes de 2006 estejam nesta situação.
Para além das dificuldades que já referiu, pode dar exemplos?
O “Sonhos de Papel” tem a ver com um miúdo que quer entrar para a Força Aérea por ter esse sonho e não pode, está vedado. Quem não tem a nacionalidade portuguesa não pode. Quero exercer um cargo na função pública, está vedado para quem não é português. Quero fazer uma viagem, não posso. Não posso circular neste espaço [Schengen]. Quero ir para um espaço que não é Schengen e precisa disto [de ter nacionalidade portuguesa]. Preciso de renovar o meu título de residência a cada dois anos no mínimo e de provar ter meios de subsistência para o poder renovar. Estou dependente dos meus pais para isso. Todos os sonhos que possa ter dependem muito de um papel de nacionalidade. Como a Lei da Nacionalidade está conectada com a lei dos estrangeiros, se eu apenas posso ter residência quando eu estiver pré-escolar, isso significa que até aos três anos não tenho qualquer documento, significa que até aos três anos eu não posso sequer sair do país. Não tenho direito a abono de família.
Há discriminação portanto…
Desde que se nasce em território nacional que se é tratado como qualquer outro estrangeiro que não nasceu em território português, que não foi educado por esta sociedade. É-se capaz de recorrer a um avô paterno ou materno, com quem nem sequer se tem qualquer ligação afetiva com o país, para se ter a nacionalidade portuguesa. Falamos de alguém a quem fazemos um reparo histórico do século XV, que é a questão dos judeus, e espero não ter de esperar mais séculos para ver acontecer um reparo histórico. Ou então de alguém que adquire o visto gold e que só tem de estar em Portugal sete ou catorze dias e daqui a seis anos pode pedir a nacionalidade portuguesa.
Há critérios distintos para quem tem capital e para quem não tem?
Sem dúvida. O ex-secretário de Estado das Comunidades Portuguesas [José Cesário, do governo PSD-CDS] deu uma entrevista à RTP Àfrica em que disse que houve sempre Lampedusas ou esta questão dos vistos gold de uma outra forma. Fiquei a pensar um bocadinho sobre isso, porque na realidade quando olhamos até para o marketing que o Ministério dos Negócios Estrangeiros fez noutros países, como na África do Sul, para apelar aos vistos gold dá para ver que existe um tratamento diferenciado. E até como a lei da nacionalidade o faz. Só tenho de estar em território nacional sete a catorze dias, dependendo se é temporário por um ano ou por dois anos, para poder conseguir aprovar o meu título de residência. Um menor nascido em território nacional ou um estrangeiro nascido em território nacional não se pode ausentar deste território por um período superior a seis meses, exceto para o país de origem se estiver a trabalhar ou a exercer uma atividade profissional. Qual é o tratamento em termos de igualdade? Então houve um tratamento, um parecer, um pensamento político diferenciado. Porque estamos a falar de muitos que nasceram e nascem em território nacional que não são endinheirados.
Como nasceu a Campanha por outra Lei da Nacionalidade?
Acho que estávamos todos fartos. Na realidade, as várias organizações lutam há muitos anos por esta mudança, mas em determinado momento – e sob o mote do colectivo Consciência Negra – convocou-se uma reunião para todas as organizações. Todos achámos que valia a pena unirmo-nos para mudarmos esta situação. Por outro lado, várias reportagens alertaram para este problema e temos realmente uma ministra que explora a questão da cor e de começarmos também a reflectir sobre isto, para além de estarmos na década dos afro-descendentes, que começou em 2015.
Os mais fragilizados da década de 80 foram sobretudo os filhos de estrangeiros que vieram das ex-colónias. A minha mãe nasceu como portuguesa e a determinada altura veio para Portugal no final da década de 60, num momento há uma independência e ela transforma-se em estrangeira, obrigando-a a pedir novamente a nacionalidade portuguesa, o que é ridículo. Ela sempre foi portuguesa. Há uma reparação histórica a ser feita. A grande maioria dos estrangeiros que entravam em Portugal vinham das ex-colónias. Só a partir da década de 2000 é que houve uma mudança, mas a verdade é que a década de 80 corresponde a esta situação.
Como tem funcionado a campanha?
Sobretudo com recolha de assinaturas online e em formato papel com pontos de recolha e com um espetáculo – utilizamos o espetáculo como forma de consciencializar. Temos assembleias, uma equipa que vai gerindo a própria campanha e, por fim, também tentámos criar uma imagem de campanha. Sempre num registo de voluntariado por termos um objectivo muito comum.
Qual o balanço que fazem?
Podíamos ter ido mais rápido ou menos rápido, talvez. Em termos de balanço é preciso ter a consciência que atingimos assinaturas acima da fasquia das cinco mil, mas que não atingimos as 20 mil. Nunca foi esse o objetivo, mas sim levar o tema à discussão por o acharmos muito importante. O que acontece muitas vezes é que o assunto nem sequer é discutido com os próprios e, por outro lado, não queríamos ir a reboque de qualquer partido político, mas que fosse uma campanha de base que realmente levasse à assembleia esta discussão. Não quisemos ir a reboque de outros, não por não concordarmos, mas por acharmos que devem ser os próprios a lutarem. Não queremos que nos digam “nós demos-vos isto”.
Quando contactam com as pessoas quais têm sido as reacções?
Há três grupos distintos. O primeiro inclui aqueles que desconhecem completamente o tema e que achavam que quem nasce em território nacional é português e ponto final. Uma situação que não pensam nem vêem. Quando apresentamos o espetáculo ou há recolha de assinaturas acham a situação bizarra e estranha. O segundo grupo são as pessoas que aceitam logo e que assinam. Por fim, há os resistentes que pensam “será que isto é um chamariz?” ou outra coisa qualquer. Temos estes três blocos de pessoas que acabam por se sectorizar.
Depois há ainda outra questão: porque é que os próprios não o fazem [assinar a petição}? A verdade é que os filhos de imigrantes nascidos em território nacional não podem votar e, portanto, não têm qualquer influência no parlamento. Alguns destes têm a reciprocidade dos países de origem, como Brasil e Cabo Verde, que realmente podem ser eleitos ou fazer eleger [apenas nas eleições autárquicas], mas para o que conta não podem votar. Então, têm de pedir a alguém nacional que assine uma petição para as suas assinaturas serem válidas. Podemos ser capazes de recolher uma folha de assinaturas em que duas são de nacionais e as restantes são de estrangeiros, que, embora assinem, não tem valor.
Ou seja, para os filhos dos imigrantes poderem defender os seus direitos precisam da assinatura de cidadãos nacionais. Têm de ser outros a defendê-los…
Exatamente. Têm de ser outros a aceitar que o assunto vá a discussão [no parlamento]. Não depende deles. Esta é a grande questão. Para umas coisas somos portugueses, ou seja, temos os mesmos direitos e deveres, mas para outras é completamente diferente. O pão que nos chega à mesa tem tudo a ver com política. Por isso, o voto não é uma coisa desnecessária e quem não pode votar sabe o que isso significa. Não votamos para quem vai decidir qual será a lei da nacionalidade ou da imigração.
Sente que os filhos de imigrantes querem votar e participar politicamente mas que estão impedidos de?
Esse é o grande mote. Os nascidos na década de 80,90 e 2000 estão completamente vedados a votarem. Lembro-me do momento em que se falava da questão dos renegados, quando apareceu o filme, e parecia uma coisa nova, mas muita gente já se tinha queixado daqueles sentimentos ao longo dos anos. Depois também houve uma falácia no sentido de que aos 18 anos era fácil escolher. Nunca foi fácil escolher, porque a lei antes de 2006 forçosamente aos 18 anos tinha de ter um papel com documentos. E muitos chegaram aos 18 anos a achar que era fácil e perceberam de repente que afinal nem documentos tinha e que ainda teria de ter documentos. Para além de que para os ter, precisa de provar por três anos consecutivos que tem meios de subsistência igual ou superior a um salário mínimo. Na realidade, é que desde que a lei existe que apenas serve para bloquear. Lembro-me de uma questão do direito romano: só era cidadão quem sabia ler e escrever, só era cidadão quem tinha dinheiro, só era cidadão quem tinha determinado estatuto. Quando olho para o tema da nacionalidade vejo que estamos a defender aquilo que secalhar o “Liberté, igualité, fraternité” nos queria dizer ao contrário, mas quando vamos ver a prática é outra.
A Associação Solidariedade Imigrante também faz trabalho na área da imigração no sentido mais lato. Como decorre o processo de legalização?
Estamos numa luta, principalmente na questão da burocracia. Temos também a situação da mudança de direção do SEF e vamos ver no que significará. Temos um conjunto de pessoas que estão a trabalhar e a descontar. Expetativas foram criadas no facto de trabalhar permitir ter uma autorização de residência, o que não acontece. Existe um dispositivo legal que diz que aquele que tem trabalho efetivo irá ter um título de residência, mas não acontece. Continuamos a receber cartas de pessoas que estão há 40, 35, 24 meses a trabalhar e a descontar – alguns até com fiscalizações por parte do SEF e outros que se deslocaram, no âmbito do artigo 88 da Lei dos Estrangeiros, ao serviço – que continuam a aguardar um título de residência ou um despacho favorável ao seu processo. É ridículo que o país dispense as pessoas que vieram para Portugal para trabalhar. É errado pensar-se que os imigrantes vêm para nos tirar dinheiro e trabalho, bem pelo contrário. Têm vindo a apoiar e a sustentar a Segurança Social, que durante muito tempo esteve periclitante. As pessoas não podem descontar sem terem direito à saúde, que se paga. Muitos deles não têm taxas moderadoras e pagam 80 euros por pessoa para terem acesso à saúde. Não estão incluídos nas taxas moderadoras por não terem título de residência.
Muitas vezes uma pessoa está um ano a trabalhar até receber o seu número de segurança social. Ficámos numa situação em que aquilo que realmente nos sustenta, que é o trabalho, deixou de ter o foco que devia – não estamos a falar de pessoas ociosas ou preguiçosas, mas de pessoas que trabalham, que descontam, que pagam os seus impostos e que não praticaram quaisquer crimes. Tire-se esta ideia da cabeça de que são terroristas – ideia que às vezes se tenta vender muito –, o que não são. Um despacho, que saiu em Março de 2016, bloqueou muitos dos processos antigos, e ainda temos cartões à espera de serem emitidos, quando as pessoas os pagaram na totalidade. O atendimento é todo sobre isto. Há uma mudança de uma plataforma e as pessoas têm de se voltar a inscrever; quando tenho de renovar um título de residência faço a marcação e tenho de enviar um email para pedir uma antecipação e se for uma viagem dizem logo que não. Se eu for portuguesa posso renovar o meu cartão de identidade em qualquer parte no país, desde que haja vaga e se quiser pago uma taxa de urgência e recebo-o no dia seguinte. Isto significa fazer dos outros reféns.
Como caraterizaria o trabalho do SEF?
Pessoalmente, acho que é péssimo. Não é possível que se espere dois ou três anos para se decidir a vida das pessoas. Não é possível que se crie um dispositivo legal por razões humanitárias para quem trabalha em Portugal há mais de um ano para, depois, todas as respostas dadas sejam de que não é do interesse nacional. Se uma pessoa trabalhar e descontar não é do interesse nacional, então por que é que se criou este dispositivo? Temos pessoas que entraram no país em 2009 que ainda estão a aguardar, pessoas que conseguiram ultrapassar a barreira por uma ou outra orientação política, directiva ou prática derrogatória ou não da lei. Pessoas que tinham vistos administrativos e que depois lhes é dito que não e que tem de voltar para trás. A esses casos não tem sido dada uma resposta e as que chegam são a conta-gotas. Não me importava que fossem a conta-gotas se fossem positivas.
Segundo consta pelo sindicato, o SEF até tem falta de pessoal, mas falta de pessoal justifica todos os atrasos, toda esta indecisão? Porque se há tempo para fazer três despachos no mesmo ano, então também há tempo para fazer um despacho de uma outra forma.
Quantos imigrantes ilegais vivem em Portugal?
Nós estimamos em cerca de 30 mil. É a nossa estimativa por aquilo que temos de atendimento. Basta olhar para as pessoas que aqui estão [na Associação Solidariedade Imigrante] e já tivemos de dizer a muitos que não temos capacidade.
Aquele protesto de Novembro [manifestação no ano passado organizada por imigrantes] demonstrou o que queremos e muitos dos que nele participaram ainda não receberam resposta. Basta sentar-se um pouco ali no atendimento e ouvir os casos.
Quais são as condições em que vivem?
Depende. Há pessoas que trabalham na agricultura em condições muito difíceis, condições que muitos portugueses deixaram de viver há muitos anos. Dividem casas entre 4,5 e 8 pessoas, porque se quiserem arrendar casa não conseguem por não terem condições para isso. Às vezes um ou outro consegue, mas é raro. Uma pessoa tem direito a uma habitação condigna e, pelo menos, ao salário mínimo. Depois também há casos em que o patrão não paga porque a pessoa não tem o número de segurança social, ficando em situações de vida muito difíceis. E aí contam com o apoio de quem? Dos próprios imigrantes, o que não quer dizer que não existam nacionais que ajudem.
Os imigrantes que estão em situação ilegal por causa do atraso das burocracias estão permeáveis ao abuso, como redes de tráfico?
Pessoas em situação irregular, ninguém é ilegal. Essas situações de abusos já aconteceram. Houve situações que o SEF presenciou e como vieram a público alguns trabalhadores foram considerados vítimas, alguns. Houve um caso de trabalhadores nepaleses que estavam a trabalhar no dia de folga e todos os que não estavam a trabalhar nas folgas não foram contemplados. Só os que estavam a trabalhar na folga foram considerados vítimas. Há patrões que não pagam e que despedem por o trabalhador não ter número de segurança social. Por exemplo, tem-se um contrato de um mês e depois de 10 dias de trabalho é-se despedido e só se recebe esses 10 dias, quando com um trabalhador nacional se receberia a totalidade do tempo de trabalho do contrato. Depois também há contratos a tempo certo, aos dias e até a horas. Isto é realmente permear a exploração pela entidade patronal. O imigrante chega ao SEF e é-lhe dito que não ganha o suficiente para estar em Portugal. Não é o patrão que lhe deve pagar? Mas quem é chamado a atenção não é o patrão, quem leva uma notificação é o trabalhador. É interessante como o foco não está em quem realmente trabalha, premiando o patrão.
Nos últimos meses vimos Pedro Passos Coelho a fazer um discurso racista e xenófobo na Festa do Pontal e André Ventura, candidato do PSD à Câmara de Loures, a criticar a comunicade cigana. Como vê estas narrativas?
Costumo dizer que tendo em conta que nós temos uma comissão contra a discriminação racial sem poderes de investigação, cujas contra-ordenações praticamente não se vêem, ou então são muito poucas as aplicadas, premiamos sempre este tipo de situação. É interessante porque secalhar Passos Coelho ainda nos vai dizer “eu tenho uma mulher negra, então não há problema. Não sou racista” e até vai usar isto como argumento se um dia for chamado a tribunal. Provavelmente, André Ventura até nos vai dizer que “tenho muitos amigos ciganos e até lhes compro ali na Feira de Carcavelos”. O nosso país costuma muitas vezes fechar os olhos e foi por isso que associações e grupos de afro-descendentes assinaram uma carta aberta para a ONU, em dezembro passado. Não é inocente que isto aconteça. Segundo o relatório para a ONU, Portugal não é um país racista.
Portugal é um país racista?
É um país racista. Finalmente começa a admitir que é um país racista, porque durante muitos anos negou-o. Até dezembro, o relatório que foi para a ONU dizia ter feito um tratamento holístico da situação do racismo e o tratamento que se fez dizia que não o somos, mas sim um país de brandos costumes. Exatamente o que permite que André Ventura faça os comentários que faz ou que Passos Coelho profira um discurso destes levianamente, para além de se misturar situações que não o são.
Gostava também de falar sobre as expulsões. As alterações que foram feitas à lei da nacionalidade e da imigração foram pontuais e não têm nada a ver com a ideia de que toda a gente que foi banida agora pode entrar. A lei da imigração é super dura e se alguém é condenado a um crime punível acima de um ano, então não renova o seu título de residência. A lei da imigração é inclusive mais dura que a lei da nacionalidade, que define que condenações de crimes com pena igual ou superior a três anos impedem a pessoa de obter a nacionalidade portuguesa. A lei da imigração sempre foi muito restrita em relação a crimes. Aquilo que Pedro Passos Coelho disse foi para inglês ver. O meu problema é que há realmente muitas pessoas que não o entende por não ser o seu quotidiano e só quando têm um amigo ou alguém que conhecem de perto é que conseguem perceber a burocracia e o chorro de mentiras que é. Da maneira que ele descreveu é mentira e não corresponde de todo àquilo que estava na lei nem ao que foi aprovado, nem ao que é a prática. O Estado de Direito permite ao André Ventura dizer coisas dessas, mas se fosse um imigrante já não sei…
Portugal está em paz com o seu passado colonial?
Nunca. Eu como afro-descendente digo que nunca. Primeiro ainda temos que admitir nos nossos livros o que fizemos. Tenho um exemplo que às vezes não concordo muito: quando fui a Berlim decidi visitar um memorial do Holocausto e é impressionante como é que um país que provocou duas guerras mundiais reconhece que isto [o Holocausto] aconteceu e que tem uma ferida aberta para relembrar o que aconteceu, mesmo que nas últimas semanas um partido de extrema-direita tenha entrado no parlamento alemão.
E nós, em Portugal, apesar de só termos 42 anos desde o fim do colonialismo, continuamos a ter nos manuais de História uma amostra de um período colonial como se os países colonizados nunca tivessem tido nada. Tudo foi descoberto, tudo foi feito pelos portugueses; não há uma questão de luta, foi dada a independência às pessoas. Nos livros parece que a Guerra Colonial foi culpa dos outros; eram os terroristas que queriam assombrar o nosso património. Não há duas versões. Não há uma versão em que me encontre nos livros. Nós fazemos parte daqueles que estavam nos porões dos navios que lá iam, como escravos, ou eventualmente fazíamos parte de umas quantas colónias em que nem estamos representados. A multiculturalidade deste país resume-se a termos uns restaurantezitos, não é? Quantas páginas de Amílcar Cabral temos nos manuais? E quantas de Platão? Basta pensar nisto não é? Quantos escritores das ex-colónias é que temos? Ainda bem que conheci Amílcar Cabral, mas não foi pelos livros de história portugueses.
Recentemente, a estátua do Padre António Vieira, em Lisboa, tem aprofundado o debate sobre o racismo em Portugal e a sua História. Como entende a polémica?
É uma polémica para quem nunca olhou para ela e para aquele que não quer olhar para a questão colonial do nosso passado. Basta olhar para o Padrão dos Descobrimentos, Mosteiro dos Jerónimos ou mesmo ler o Sermão [aos Peixes, do Padre António Vieira] para sabermos do que estamos a falar. Basta pensar em quem é que ele [Padre António Vieira] defendia e qual o passado que defendia, e o problema é que ninguém quer olhar para a História e pensar que é uma ofensa…Para quem é afro-descendente não é uma polémica. É como se eu olhasse para o Mosteiro dos Jerónimos e dissesse “epá, é uma obra fantástica, mas quantos escravos morreram aqui?”. Secalhar não devia ter este olhar, mas nos livros de História é a grandeza exponente e a riqueza que foi trazida de outros países para o nosso Portugal fantástico. Como eu sempre estive do outro lado, tenho um olhar crítico. Desde sempre que não celebro os Descobrimentos por não os considerar um passado glorioso deste país. Nesse passado, os meus antepassados estavam a carregar pedras – e não eram pagos por isso¬ -, não é? É uma polémica para os não-negros ou não-ciganos. Para nós, é mais que evidente que o passado não deveria ser glorificado como é.