“A social-democracia já teve os seus dias”, mas nem por isso a esquerda radical deixou de se apropriar das suas linhas programáticas. “A maré está a subir e a esquerda radical vai voltar em força”. Quem o diz é Luke March, professor de Ciência Política na Universidade de Edimburgo, especialista na esquerda radical europeia, numa conversa com o SOL antes da conferência “The come-back of the radical left”, organizada pelo ISCTE-IUL em parceria com a Friedrich Ebert Foundation, em Lisboa, na passada segunda-feira.
O colapso da União Soviética (URSS) foi há mais de 25 anos, mas as suas consequências ainda se fazem sentir. Como reagiu a esquerda radical a esse colapso e que trajetórias tomou?
Foi um choque externo e massivo, que obrigou as forças políticas a ajustarem-se. O grau de afetação está relacionado com o grau de preparação para esse evento. Aquelas que se tinham divorciado ou separado da URSS, ou que já se estavam a transformar por antecipação ao colapso, adaptaram-se muito mais rapidamente. Para outras que tinham elos muito fortes com a URSS, em termos de identidade, a adaptação foi muito maior. Podemos falar em três formas distintas de adaptação da esquerda radical. Uma foi a da transformação completa da sua identidade, deixando de ser esquerda radical, aceitando parar de desafiar o capitalismo e tornando-se social-democrata. Foi isso que a maioria dos partidos da Europa de Leste fez, onde se inclui o Partido Comunista italiano – o único da Europa ocidental a seguir essa via e um caso muito específico, uma vez que o país não tinha um partido socialista. Uma segunda forma foi a da reafirmação da identidade e da defesa de grande parte do que foi feito pela URSS, mesmo tendo colapsado. É o caso do Partido Comunista Português e do grego KKE. Fizeram alguns ajustamentos menores, mas continuaram como dantes. A terceira foi a da afirmação de que ainda existe margem para desafiar o capitalismo, que os velhos modelos já não funcionam e que é preciso algo novo para o combater. Uma terceira via. Esta enfrenta novos problemas, mas também tem mais oportunidades e mais variáveis, e evoluiu em termos de identidade com a junção de várias organizações e movimentos, com trotskistas, maoistas – como é o caso do Bloco de Esquerda.
Como explica o facto da esquerda radical não ter emergido com muita força em países como França ou Itália, no pós-URSS?
A outra coisa que deveria ter dito é que depois do colapso da URSS, vários partidos comunistas perderam apoios, algo que é muito importante para sobreviverem. Os partidos tiveram de funcionar por si próprios e tornaram-se muito mais divergentes, o que lhes permitiu apelar ao eleitorado nacional de outra forma e adaptarem-se. No passado, a URSS limitava-os e constrangia as suas atividades, mas mantinha muitos deles vivos. Agora adaptam-se e não têm nada a impedi-los de cometer grandes erros. Por isso, a sua força ou fraqueza depende de um enquadramento nacional, muito distinto por toda a Europa. Na Grécia, por exemplo, temos um partido no governo que está a perder popularidade, em Portugal temos uma situação muito única e no Reino Unido a esquerda radical não existe enquanto força autónoma, pelo que tem operado através do Labour Party. Fundamentalmente, as oportunidades em termos de mudanças e da situação socioeconómica do pós-crise, mas mesmo antes da crise havia escapes para a esquerda radical. Existia desemprego, precariedade, flutuações no crescimento económico, e, ao mesmo tempo, estava-se a construir algo novo e estável, o que é muito difícil, para além do campo eleitoral ser muito disputado e muitas vezes existir a percepção, em muitos países, de que a esquerda radical está obsoleta por ter muita bagaguem histórica.
Por vezes, a própria esquerda radical é sua própria inimiga. Por exemplo, Em 1990s a esquerda radical italiana teve uma muito boa oportunidade para construir alguma coisa nova, mas foi incapaz de construir um partido com um programa consistente. Ao invés, construiu um conglomerado de personalidades com uma estratégia oscilante. Quando a esquerda radical fica muito reduzida torna-se prisioneira do seu próprio ambiente e se conseguir fazer progressos, óptimo, mas geralmente correm mal e não têm uma rede de salvamento. Paradoxalmente, as únicas estratégias que têm funcionado a longo termo é a dos partidos comunistas que não se reformaram, porque se conseguirem manter o apoio das pessoas, tiverem uma história e identidade para venderem e uma organização consistente podem manter-se por muito tempo. Década após década.
Considera então que a actual solução governamental que incluiu o PCP é uma ameaça à existência do partido?
É uma ameaça, mas se se vai materializar é um assunto diferente. Para a esquerda radical qualquer participação na governação é um risco. Continua a ser uma família partidária com fortes raízes ideológicas, uma das suas fraquezas é ter organizações recentes, como o Podemos em Espanha e a France Insubmisse em França, que são bastante dinâmicas mas que não sabemos como estarão daqui a cinco anos. Mantêm-se inflexíveis no que exigem a outras famílias partidárias e, portanto, quando fazem acordos há partes das organizações que os entendem como traições, o que é um risco para a sobrevivência dos partidos. Para além disto, as experiências governativas da esquerda radical demonstram que não se safam tão bem, daí o exemplo português ser tão interessante. A experiência já dura há dois anos e continua a ser favorável nas sondagens de opinião, demonstrando que o Partido Socialista (PS) se está a sair bem, muito bem.
Nas sondagens de opinião o PS sai-se muito bem, mas o PCP e o BE não sobem significativamente nas sondagens. Quem está a ganhar no final de contas?
A teoria diz que é o partido maior que ganha, neste caso o PS. É o que acontece em todas as coligações, mas principalmente se não se estiver no governo. O que se pode reclamar como uma conquista no final dos quatro anos da legislatura? O socialistas podem dizer que tudo foi uma conquista deles. O PCP e o BE não ganharam nas sondagens, mas também não caíram. A ideia de que vão ter um mau resultado no final da legislatura é improvável, mas se não caírem demasiado é positivo, se tiverem conseguido travar a austeridade. São ganhos muito pequenos, mas se pensarmos noutros exemplos, como o do Partido Comunista Italiano ou no do Francês, o BE e PCP não colapsam depois de terem participado na governação. Além disso, os partidos podem recuperar depois, como aconteceu com o Movimento Esquerda-Verde na Islândia, que governou a partir de 2013 e no meio da crise. Por algum tempo foi percepcionado que o governo se estava a sair bastante bem ao ter alcançado algumas conquistas, como a recuperação de pensões, apoio a hipotecas e etc, mas no final da legislatura o partido tinha perdido muito apoio. No entanto, em 2016, conseguiu recuperar eleitoralmente.
O problema fundamental para a esquerda radical é não ter credibilidade como força governativa, muito por causa da URSS. Desde sempre que a esquerda radical não tem participado na governação, exceptuando pequenos partidos que, por vezes, entram em colgiações, como no Chipre ou na Moldávia. Mas são excepções à regra.
Acha que depois desta solução governativa o BE e PCP podem deixar de ser partidos alternativos ao PS para passarem a ser percepcionados como muletas?
A resposta a essa pergunta dependerá do nível de coordenação entre os três partidos. Pelo que sei, reúnem-se frequentemente para que nada seja uma surpresa e para se saber como cada partido votará no parlamento, contrastando com outras coligações governativas. No entanto, a “geringonça” deixa de fora muitos assuntos, como a NATO, a reestruturação da dívida e a União Europeia, o que lhe dá mais hipóteses de sucesso. Se depois de quatro anos a governação for percepcionada como positiva e produzir crescimento económico, ao mesmo tempo que trava a austeridade e respeita os limites do défice da UE, então, nas actuais circunstâncias, será um enorme sucesso por não o esperarmos. A questão fundamental é quem irá recolher os créditos, mas se houver uma gestão dos mesmos, então até ganhos pequenos serão bons para os partidos mais pequenos. O principal risco seria o PS se safar tão bem que da próxima vez não precisará dos partidos mais pequenos. A esquerda radical encontra-se na defensiva e deve começar por algum lado.
Acredita então que a esquerda radical em Portugal se encontra à defensiva?
Na generalidade, sim. Simplesmente porque o que estão a oferecer actualmente não é o que era antes, não é radical. É o que chamávamos social-democracia: travar o neoliberalismo, que hoje é praticamente tudo; travar o desmantelamento do Estado Social e as privatizações. No geral, temos assistido ao caminhar para políticas mais centristas. Se a esquerda radical estivesse numa fase em que o pudesse fazer no governo, então poderia começar a dizer que estava a transformar a situação. Se a solução portuguesa for bem-sucedida, mesmo que parcialmente para a esquerda radical, esta última poderá dizer que é outro exemplo em que conseguiu parar e reverter a austeridade. A esquerda radical e outras pessoas falam sobre o fim do neoliberalismo, mas este não se distancia muito para além do sentimento popular, que é real, e do aumento eleitoral de alguns partidos, mas sem evidências reais de que alguma coisa está a mudar na Europa e o Syriza, na Grécia, é um exemplo disso. Precisam de algo positivo para contrapor à experiência do Syriza.
Quando o Syriza ganhou as eleições legislativas, em 2015, uma onda de expectativa varreu a Europa, mas depois capitulou. Quais foram as consequências para a esquerda-radical europeia?
A consequência imediata foi uma evaporação da onda de expectativa, seguida por uma onda de desmobilização e desmotivação. Estava em Berlim numa reunião de vários grupos de esquerda no dia em que o referendo grego foi anunciado. Foi uma felicidade enorme e o acreditar de que era o momento em que as coisas iriam mudar, mas uma semana depois foi seguido de uma derrota estrondosa. A ideia de uma onda de mudança, da passagem da defensiva para a ofensiva pela esquerda radical, e a existência de um modelo que inspirasse milhares por todo o continente europeu foi atingida. Depois também existiram cisões entre a própria esquerda radical.
O Partido de Esquerda Europeia continua a depender muito do Sriza e a defender as suas políticas, além de ter havido cisões no Syriza, pelo menos esta é a perspectiva entre a esquerda radical britânica sobre o que se passa na Grécia. Alguns dos seus elementos defendem que a União Europeia está acabada e que a ideia de reformá-la terminou. No curto prazo, as consequências eleitorais não parecem ter sido tão más. O Podemos desceu um bocado nas eleições e a solução governativa portuguesa veio depois. No entanto, a questão do que a esquerda radical consegue fazer dentro desta Europa mantém-se. Sei que a líder do BE, Catarina Martins, disse que grande parte da esquerda é muito ingénua ao pensar que consegue reformar a zona euro. Há um aumento das tendências eurocépticas.
Depois da capitulação do Syriza, a esquerda radical afirmou ser impossível reformar a UE, mas meses depois parece que alguns partidos continuam a acreditar que pode ser reformável. Por exemplo, essa é a posição do Partido de Esquerda Europeia. A experiência Syriza não alterou a posição da esquerda-radical face à EU?
Não radicalmente. As posições da esquerda radical europeia são ideológicas, de longo prazo. Não se alteram muito com os eventos. É o europeísmo de esquerda, que deriva do eurocomunismo. É uma posição que tem mantido desde a década de 70 e que não se alterou – pelo menos não vi grandes alterações –, para além do exemplo português. Na periferia europeia não se assistiu a uma grande transformação na visão sobre a Europa desde a crise. É mais crítica, mas ainda segue a mesma orientação: a de reformar a Europa.
Diria que a posição preponderante face à UE é…
É um bocado vaga. É a de se querer uma outra Europa, reformar a UE através das suas principais instituições, o fim das troikas, mas que a única forma é através da cooperação das forças europeias da esquerda radical pela via eleitoral.
As relações internacionais dos partidos de esquerda radical baseiam-se na transformação da UE por dentro.
Exactamente.
Este fim-de-semana vai haver uma Cimeira do Plano B, organizada pelo Bloco de Esquerda e com a participação de alguns dissidentes da via do europeísmo de esquerda. Para se confrontar as instituições europeias os partidos de esquerda radical devem ter um plano de saída da zona euro e até da EU?
Ainda bem que referiu a Cimeira. Tem sido uma iniciativa promissora, mas em 2016 desapareceu para depois reaparecer durante a campanha de [Jean-Luc] Mélanchon [às presidenciais francesas]. Acho que se ter um Plano B é fundamental. Foi um dos grandes erros do Syriza. Não tinha nada com que ameaçar as instituições europeias nas negociações. Quando se chegou à altura de aceitar medidas de austeridade humilhantes ou de se sair da zona euro, foi quando o balanço se inverteu e o Syriza pensou que não conseguia sair por ser demasiado destrutivo. Não houve nenhum pensamento sério sobre a saída da zona euro antes do confronto. A UE é uma coisa, mas a zona euro é uma construção neoliberal que disciplina os seus membros e que não lhes permite margem de manobra [orçamental].
Acha que com esta Cimeira a esquerda radical está a falar a sério sobre a possibilidade de saída da zona euro?
Fala a sério, mas a questão é se um Plano B terá apoios suficientes para avançar. Até ao momento, os seus defensores são políticos individuais, alguns activistas e pequenas organizações, para além de ter criado uma clivagem no seio da própria esquerda radical. Historicamente, este quadrante político não consegue concordar em nada, por isso não me preocuparia assim tanto. Um Plano B apenas terá força se for partilhado por muitos partidos que integram o Partido de Esquerda Europeia, mas também por outros que não lhe pertencem. Aí sim, tornar-se-à a sério, mas enquanto for apenas apoiado por Mélanchon e alguns outros, não.
Acredita que com esta clivagem no seio do Partido da Esquerda Europeia é precisa uma nova internacional de partidos de esquerda-radical?
É preciso algo, mas não sei se é uma nova internacional. Temos o Diem25, o Partido de Esquerda Europeia, o GUE/NGL, International Meeting Communist Workers Parties, a IV Internacional, entre outras. Ainda assim, deve-se reflectir sobre o funcionamento das organizações e se fazem sentido. Por exemplo, o GUE/NGL tem funcionado bem mas é uma organização muito conservadora. O facto de haverem tantas organizações demonstra que não conseguem marcar a agenda política.
Desde o início da crise económico-financeira e das políticas de austeridade que temos assistido à erosão do que o britânico Tariq Ali apelidou de “extremo-centro” com o colapso do PASOK, PSF, PvdA. Quais têm sido as reacções da esquerda-radical?
A esquerda radical sentiu que havia aqui uma oportunidade no sentido em que a social-democracia já teve os seus dias e que a ideia de se trabalhar como uma vasta instituição está morta ou a caminho de morrer.
As novas estratégias, principalmente depois do Syriza e do Podemos, baseiam-se no populismo de esquerda, que é uma forma de ultrapassar a retórica de classe e a etiqueta negativa da esquerda radical. Por exemplo, Pablo Iglesias disse que a etiqueta de esquerda radical atormenta o Podemos por causa da bagaguem que possui, pois as pessoas podem-se identificar com algumas das suas políticas, ao mesmo tempo que receiam o partido. A France Insubmisse é um exemplo semelhante, que também se baseia nas experiências da América-Latina e que está a construir novas formas de organização em rede. Algo que se assemelha mais a um para-partido do que às tradicionais organizações da esquerda radical.
Está a referir-se às redes de solidariedade que o Syriza criou na Grécia?
São parte do mesmo fenómeno, mas não atingiram o nível do Podemos, por exemplo. Antes de 2008, a esquerda radical não estava a ter grande sucesso, e mesmo que tenha tido, como aconteceu em itália, resultou no colapso do partido. Hoje, está mais ousada ao aspirar ser governo. O Podemos e o Syriza demonstraram-no, algo que foi importante na ascensão do último, que disse que “não somos apenas um movimento, queremos também ser governo”. Voltamos à questão de como a esquerda radical se relaciona com a governação. Antes do Syriza, houve um período de reflexão que não estava a correr muito bem. Então, o partido disse que não iria ser um partido minoritário numa coligação com os sociais-democratas, mas que iria entrar no governo, substituindo-os. Foi uma jogada muito ousada.
No Reino Unido existe uma retórica semelhante, mas a sua manifestação é diferente. Jeremy Corbyn defende políticas socialistas e reafirma que o blairismo está morto. É populista no sentido em que acusa o establishment, mas apresenta políticas concretas para se afirmar como diferente dos restantes partidos. Contudo, as suas políticas são semelhantes às dos sociais-democratas décadas atrás.
Os críticos do populismo colocam o populismo de esquerda no mesmo saco que o da direita. Quais são as diferenças?
As semelhanças estão na “embalagem”. Os populistas contrapõem o povo à elite e fazem essa divisão central, mas as diferenças entre ambos são fundamentais. O populismo da esquerda mantém-se leal às suas raízes: continua a defender o povo, a ser internacionalista, a proteger os imigrantes e minorias e a colocar a igualdade no centro das suas políticas. As elites que ataca são fundamentalmente as económicas. Já o populismo da direita radical ataca essencialmente as elites culturais e liberais, que é o que temos no Reino Unido. A esquerda não se foca nestes alvos. O que diferencia a esquerda radical da direita radical são basicamente as políticas, o estilo e a linguagem, bem como a ideia de que a sociedade se baseia na clivagem entre o povo e as elites, que são diferentes.
A direita radical está a avançar por toda a Europa. Considera que é de alguma forma um falhanço da esquerda radical?
Acho que demonstra um falhanço. Há mais factores que o justifiquem para além da esquerda radical. Os estudos mostram que os seus eleitores se sobrepõem um bocado, mas a maioria dos eleitores que votam na direita radical são muito diferentes dos que votam na esquerda radical. Têm diferentes percursos culturais, educativos e vêem os estrangeiros e a imigração de forma bastante diferente. Não é apenas por não existir um partido de esquerda radical que ocupe o vácuo político, mas também o porquê dos eleitores dos partidos sociais-democratas passarem a votar nos da direita radical que esta sobe. Podemos dizer que era suposto a crise ser um grande momento para a esquerda radical, mas está a ser um momento para o nacionalismo, para se fechar fronteiras, reafirmar a nossa identidade e, por vezes, até a nossa identidade subnacional. O problema é que a esquerda radical não utiliza essa linguagem, mesmo que alguns partidos, como o Podemos, falem de soberania popular, soberania nacional ou patriotismo. Consegue disputar um pouco esse espaço, mas a maioria da esquerda radical não o faz. Por exemplo, nas eleições alemãs alguns votos que a AfD obteve vieram do Die Linke, mas principalmente dos restantes partidos.
Na sua opinião, o que é que a esquerda radical deveria fazer para combater a direita-radical?
Muitas pessoas estão perplexas com este assunto. Por um lado, deviam adoptar um discurso de identidade nacional sem se tornarem versões menores dos partidos da direita. Não se deviam tornar anti-imigração, mas precisam de encontrar um caminho para conseguirem falar de como as pessoas se sentem com algumas das mudanças, explicando as razões para essas mesmas mudanças. É uma linha dificil de estabelecer. Por exemplo, o partido socialista holandês dirige-se às pessoas que se sentem ameaçadas pela imigração e explica-lhes o porquê desta não lhes roubar os empregos, em vez de simplesmente as calar e afastar. É semelhante ao que Jeremy Corbyn está a fazer no Reino Unido quando afirma que em certas circunstâncias a imigração é algo que coloca pressão no Estado Social, mas que também é boa para a economia e que a resposta à questão não é fechar as fronteiras, mas investir em certos serviços para fortalecer as infraestruturas. De forma alguma a esquerda radical conseguirá ganhar se adoptar os temas da direita radical, enquanto esta última consegue roubar os temas e políticas à primeira muito facilmente. A direita radical facilmente consegue advogar que está a defender os trabalhadores e o Estado Social.
A solução governativa em Portugal com o apoio parlamentar do BE e PCP ao governo minoritário do PS tem sido elogiado na Europa e até se falou de uma possível coligação entre o SPD e o Die Linke na Alemanha. Acha que o exemplo português está influenciar a esquerda radical europeia?
É demasiado cedo para dizer que está a influenciar – e se o fizer dependerá dos resultados –, mas faz parte do debate entre a esquerda radical europeia. Algumas organizações olham com muito interesse e inveja para o que está a acontecer em Portugal. Uma das lições da esquerda radical é um pouco contrária ao que se vê: que um partido esquerda radical não poderia apoiar um governo por ser o pior caminho, mas em Portugal não está a acontecer. A história sugere que não deveria estar a acontecer desta forma. Os outros partidos vão olhar e pensar que até poderá ser uma boa ideia. Acho que a maior lição é para os sociais-democratas e de como se relacionam com a esquerda radical.
Na Alemanha, o assunto não tem surgido do lado do Die Linke e de como vêem o SPD, até porque muitos vieram deste partido, e na Alemanha Democrática, até por causa do sistema, a maioria seria social-democrata se o partido fosse forte no princípio dos anos 90 e se não se tivessem sentido vitimizados com a forma como o Leste foi tratado [depois da reunificação]. Do lado do Die Linke existe muito pragmatismo, mas da parte do SPD e da classe política alemã existe muita visão histórica.
Se nas sondagens o maior beneficiado é o PS, o único que se tem aguentado na Europa, e a retoma de rendimentos não é assim tão elevada como BE e PCP gostariam, como é que os partidos europeus da esquerda radical podem querer replicar o modelo?
Bem, existem outras potencialidades em que os sociais-democratas não estão em dificuldades, como os da Europa do Norte, mas não existe nenhum outro caso em que estejam tão bem. Pelo que sei, a actual solução governativa portuguesa pode ser pontual e não se repetir no futuro, mas para a esquerda radical as negociações serão uma aprendizagem fundamental para o futuro sobre quais as condições programáticas para replicar no futuro, deixando alguns assuntos de fora e definindo linhas vermelhas, bem como o nível de comunicação que se deverá ter na solução governativa e como reagem quando assuntos sensíveis surgem. Estas são algumas das lições que a esquerda radical europeia pode apreender.
Acha que o BE e o PCP se deveria focar mais nas ruas do que no parlamento para travarem a austeridade?
É sempre um assunto sensível para estes partidos. Sim, não deveriam esquecer as suas atividades na rua para manterem um nível elevado de mobilização, caso contrário os resultados eleitorais daqui a dois anos serão previsíveis. Ao mesmo tempo, o caso italiano – quando a Refundazione Comunista estava no governo – mostra que quando a mobilização popular se vira contra o governo, isso é mau para os partidos da esquerda radical. A pressão deve ser colocada no PS e não nas lideranças do BE e PCP para se avançar com medidas que caso contrário nunca avançarão. Em princípio os partidos não podem esquecer a mobilização, pois há inúmeros casos de partidos da esquerda radical que foram sugados para as instituições e transformaram-se numa organização puramente parlamentar, que leva a confrontos internos e ao abandono dos eleitores. Isso é quase uma lei, está sempre a acontecer.
Acha que se estão a esquecer dessa parte?
Para ser honesto não sei o suficiente do cenário das mobilizações para expressar uma opinião.
É o centenário da Revolução de Outubro. Que legados o “assalto aos céus” deixou à esquerda radical de hoje?
É um legado complexo. Foi a tentativa de colocar as ideias de Karl Marx em prática e de tentar mudar a sociedade. Por muito tempo, e independentemente do que se pensasse da URSS, o gigante soviética contrapôs-se ao neoliberalismo e ao capitalismo na Europa para que não fossem demasiado longe e se esquecessem de certas políticas. A URSS ajudou à criação do Estado Social e desde que colapsou que existe um vácuo.
Por outro lado, ainda possui um legado dividido entre a esquerda. Não apenas sobre a Revolução, mas também sobre o sistema que criou e o estalinismo. Na Europa Ocidental ainda existe o estigma de socialista ser igual a comunista, que, por sua vez, faz-se é igual a estalinista, que é uma forma de afirmar que as suas políticas nunca funcionarão. É por isso que é importante que a esquerda radical vá para o governo: para demonstrar que essa suposição é errada e que consegue governar para mudar a situação.
Ainda existem algumas organizações que defendem e praticam o centralismo democrático. O legado leninista continua a ser muito divisivo. Algumas organizações continuam a funcionar de cima para baixo, muito hierárquicas, com a ideia de vanguarda. Para mim, o futuro é fugir a estes modelos de organização e criar-se uma organização em rede. Mas é também uma coisa muito cultural. Alguns partidos continuam a ter esta perspetiva muito elitista de que são os guardiões da classe trabalhadora e de que têm a doutrina correcta. Alguns partidos sociais-democratas continuam a ter esta forma de organização, que está relacionada com a industrialização. A esquerda radical não pode ser dogmática.
Quais são as suas perspetivas para a esquerda radical? Acha que vai voltar em força?
Acho que a maré está a subir e que a esquerda radical vai voltar em força, mesmo que muito lentamente. Não estamos a falar das esperanças do Syriza e do esperado efeito dominó de 2015. Há muito mais em jogo e muito mais volatilidade, mas acredito que vai ter mais sucessos vibrantes, tal como falhanços. Dou-lhe o exemplo da Islândia. Segundo as últimas sondagens de opinião que vi, cerca de 28% dos inquiridos pretendiam votar no Movimento Esquerda-Verde.
Há mais de 15 anos a esquerda radical era composta por partidos que eram relíquias e resíduos do passado, que ainda existem, mas agora temos muitos mais partidos que têm novas formas de organização e que são dinâmicos.
As condições para fortalecer a esquerda radical ainda se encontram presentes: a injustiça, o empobrecimento, sociedades em que as generações mais novas não podem aspirar às oportunidades que os seus pais tiveram, entre outras. Estes temas serão fundamentais para a esquerda radical. As causas são estruturais e não conjunturais e meras políticas não serão suficientes para transformar a situação. Tem a ver com o modo de criação de riqueza, a globalização e de que forma as organizações supra-nacionais funcionam, como a UE, que são, por vezes, ineficazes para resolver problemas. Todos estes temas devem fazer parte do discurso da esquerda radical.
Acredita que a longo termo o confronto será entre a esquerda radical e a direita radical com a crescente erosão do centro político?
Ninguém consegue prever isso com grande certeza, mas parece-me que é a trajetória da polarização que temos assistido. O centro pode voltar, mas seria um centro muito instável e talvez não se conseguisse consolidar, como, por exemplo, em França. Algumas pessoas da esquerda radical argumentam que Macron [presidente francês] apenas está a adiar o inevitável e que quando falhar será substituído por Marine Le Pen [líder do partido de extrema-direita Frente Nacional]. O centrismo dependerá das condições, nomeadamente das socioeconómicas, para recuperar. Acho que o poderá fazer, mas a médio prazo é altamente provável que tenhamos polarização entre a esquerda radical e a direita radical.