Foram demasiadas as crianças que sucumbiram aos incêndios deste ano no nosso país. Se todas as perdas que os fogos geraram são cruéis, as de crianças são ainda mais impiedosas e difíceis de aceitar.
Mas não são só as crianças que partiram que foram sacrificadas. As que sobreviveram, se não acreditavam, passaram a acreditar na existência do inferno. Um inferno que surge de repente, onde são apanhados não só os maus que atearam o fogo, mas todos os inocentes que tiveram o azar de estar perto deles.
O desespero, o medo de morte, a sensação de incapacidade e de desamparo vividos naqueles momentos de horror, dificilmente terão um bom desfecho para estas crianças que jamais deveriam ter passado por vivências tão extremas.
Se algumas poderão vir a passar por perturbações de ansiedade mais ou menos complicadas, para as quais os familiares deverão estar atentos, todas certamente mudarão a forma de ver e de estar na vida.
Muitas crianças têm receio de que haja pessoas más – que podem imaginar em forma de bruxas, ladrões ou seres diferentes dos humanos – embora mantenham a esperança e o desejo de que não existam. Desde o momento das chamas e de tudo o que sobre elas é dito e noticiado, têm a certeza não só de que as há, como de que vivem bastante perto de si. De propósito, por ignorância ou negligência, houve alguém, bastante próximo, que lhes tirou algum familiar, a casa ou desfigurou a aldeia onde sempre brincaram. Alguém tão próximo que pode mesmo ser um vizinho ou um parente.
A demasiadas destas crianças foram levados familiares ou amigos, foram queimados os seus brinquedos, a sua escola, as suas roupas, a sua cama ou a sua casa. Faltam demasiados rostos nas aldeias onde vivem e os que ficaram estão desfigurados, desolados, zangados, revoltados, sentem-se injustiçados e abandonados. Há mesmo famílias que ainda hoje não foram ajudadas e continuam sem água e eletricidade!
Também estas crianças vão crescer na zanga e tristeza dos mais velhos, que choram o que e quem perderam. Vão crescer com esta sensação amarga de injustiça, de abandono, de medo de que no próximo fogo ninguém as consiga salvar.
São crianças a quem as chamas lavraram também alguma inocência e meninice. Haverá vontade para brincar no meio das cinzas? Ante as lágrimas e desespero dos familiares? Das suas perdas, das de familiares ou vizinhos?
Felizmente há nestas aldeias do interior, além de incêndios e incendiários, gente de muito bom coração e de uma proximidade e sentido de entreajuda mais fortes que o fogo. Tenho um amigo cuja família, quando ele era criança, perdeu a casa e o sustento num incêndio. O que ficou, além do desespero e amargura dos pais, foi a lembrança dele e os irmãos passarem a vestir roupas oferecidas pelos vizinhos, das entregas constantes de comida e da ajuda para a construção de uma nova casa.
Espero que as crianças que ficaram para contar a calamidade deste ano tenham a mesma sorte e consigam voltar a ver a vida, não a vermelho intenso e preto e branco, mas a cores, como antes.