Não me interpretem mal. Tenho a certeza que o primeiro-ministro preferiria não voltar a ouvir um discurso de Marcelo Rebelo de Sousa semelhante ao que o Presidente da República proferiu esta semana. Não partilho, todavia, do êxtase de uma direita órfã que acha possível recuperar o ‘pai’, nem da crença de que António Costa mudará um centímetro da sua ação política depois do embate.
Marcelo não disse o que disse somente para compensar a falta de humanidade de um primeiro-ministro cuja resposta à morte dos seus concidadãos foi «habituem-se». O Presidente distanciou-se assumidamente de um Governo a que fora assumidamente próximo, transferindo a ‘paternidade’ para a esquerda. A exigência de relegitimação parlamentar foi isso: colar o Partido Comunista e o Bloco de Esquerda a António Costa, descolando o seu apadrinhamento presidencial. A direita, sem rosto, não poderá aproveitar.
Não é sequer a primeira vez que Marcelo o faz – decidir, não decidindo. No «erro de perceção mútua», colocou o destino de Mário Centeno nas mãos do primeiro-ministro. Agora, será o Parlamento a decidir o futuro da ‘geringonça’. Isto faz com que o ónus da confiança não esteja no Presidente, caso a confiança seja depois imerecida, mas em quem a dá a seu pedido. O poder das manutenções é dele; a sua responsabilidade não. Hoje, é maestro numa orquestra em que a música parou. É ele quem decide quem toca, quem recomeça, quem segue a sinfonia. Mas não é ele que escreve a partitura. Se o concerto não correr bem, o desafino não é dele; é de quem tocava. Marcelo estava só a segurar a batuta. Continuará no palco, independentemente dos músicos escolhidos pela plateia e isso é poder. Será poder suficiente? Parece que não.
António Costa não entrou no debate quinzenal mais humilde. Pediu desculpa aos portugueses, à centena de famílias vitimadas no fogo, quase que por favor à Oposição. Os «chavões», usando o termo de Marcelo Rebelo de Sousa, do «crescimento económico» e das «reformas» não vão deixar de fazer parte do discurso do Executivo. Foram, aliás, «chavões» que o Palácio de Belém defendeu durante quase dois anos.
Também não se entende que o Presidente tenha requisitado um Governo relegitimado pela Assembleia da República – coisa que a moção de censura apresentada pelo CDS proporciona – e vá dar posse aos novos ministros de Costa antes de o Governo passar na dita relegitimação. O presidente do PS não deixou de considerá-lo como um «sinal» político positivo, claro. Mas, mais do que isso, é a prova de uma de duas coisas: da invalidade do discurso de Marcelo a priori ou da surdez de Costa a esse discurso, a posteriori. Ambas são um péssimo sinal. Para o chefe de Estado, para o chefe do Executivo e para os portugueses que não merecem que a tragédia se repita.