Entro na loja do senhor Luís. Homem dedicadamente trabalhador, e trabalhador totalmente dedicado. Ainda na passada semana tinha ido ‘à terra’ enterrar um familiar. Encerrou a sua pequena loja ao meio-dia e foi ao funeral que era pelas quatro da tarde. Com os sinos da Igreja a tocarem. Ainda sorriu quando um solícito fiscal lhe solicitou que retirasse, com rapidez, o carro. E eu olhei para ambos, e com o meu sorriso maroto – que o tenho! –, senti um misto de uma clara autoridade e de uma inequívoca simplicidade. Que bem úteis teriam sido em Pedrógão e em alguns concelhos de Portugal no passado domingo!
Foi ao funeral e regressou à sua labuta diária. Ao seu ganha-pão numa loja que deve preencher os requisitos de loja histórica. Lá estava, como todos os dias, a sua rádio de sempre e lá está a sua permanente disponibilidade e a sua contínua generosidade.
Na quarta-feira passada olhou fixamente para mim. O Alberto, sempre solidário e perspicaz, perguntou pelos fogos na aldeia. E ele, com uma serenidade que arrepiou, apenas disse olhando para o teto da sua loja que, na verdade, naquele momento era o céu cinzento que nos dominava: «Não há memória!». Não há mesmo memória! E acrescentou, sentindo nós a dor das palavras e as lágrimas da alma, que «o Presidente Marcelo fez um grande discurso. Espero que o tenham escutado».
Escutaram, meu caro Luís. Mesmo pensando alguns, na sua ideologia perturbante, que bom seria que não tivesse sido tão penetrante…. Com verdadeira força interior, apertei-lhe a mão e atravessei a avenida. Dita 5 de Outubro, em razão da data da proclamação da República. E dos princípios estruturantes do republicanismo, onde a afirmação política se conjugava com uma efetiva proclamação humanista. E uma e outra valiam ouro!
Agora, neste momento e com estas circunstâncias, o ouro, o ouro mesmo, é o exemplo da simplicidade resignada do senhor Luís. E de todos os ‘Luíses’ e ‘Luísas’ que o incêndio levou, e de muitos outros que ficaram sem teto e quase sem voz.
Mas não esquecemos terras e carros calcinados, homens e mulheres desesperadas, netos e avós abraçados numa dor imensa e intensa. Sabemos bem que, por vezes, ‘não há memória’. Mas importa que não se perca, nunca, a memória. Esta memória de um Verão que tem de ficar na nossa memória coletiva. Sabendo, como o nosso Luís com seu o coração a sangrar, que um beirão aprendeu, de geração para geração, da bisavó para o bisneto, que ‘no mesmo berço se nasce e se morre’. E mesmo estando longe o berço é o nosso refúgio e amparo, nossa recordação e nosso coração. Sabendo também desde o nosso imortal Luís de Camões que o fogo ‘queima corações e pensamentos’!