“São prémios como este que permitem pôr o termómetro e medir a temperatura da ciência no país”. Era assim que em 2013, no rescaldo da primeira edição dos Prémios de Neurociências da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, João Lobo Antunes resumia o sentido dos galardões que estavam a dar os primeiros passos. Logo nesta primeira edição, o júri – que o neurocirurgião desaparecido no ano passado presidiu desde a primeira hora – tinha recebido 79 candidaturas e desde então o número não tem parado de aumentar. “Isto não é um prémio de carreira, é um prémio para financiar trabalhos e não queremos deitar dinheiro à rua. Claro que em ciência há muitas sementes que não germinam, mas estes são grupos de ciência sólidos e só isso significa uma vitalidade importante num país da nossa dimensão”.
São dois os prémios científicos que a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa atribui, anualmente, desde essa primeira edição em 2013. Têm os nomes de dois homens ligados à história da instituição.
O primeiro, o Prémio Melo e Castro, é uma homenagem ao provedor José de Melo e Castro, que em 1966 inaugurou o Centro de Reabilitação de Alcoitão, centrado na recuperação de lesões da coluna. E é precisamente os avanços nesta área que procura distinguir, financiando novas soluções para o tratamento de lesões vertebro-musculares.
O segundo galardão recebe o nome de Mantero Belard, um dos maiores beneméritos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, nascido em Lisboa em 1903. Comerciante, não teve descendência e legou parte do seu património à ação social da Santa Casa, incluindo a residência Faria Mantero, destinada a acolher “pessoas idosas, cultas, de mérito e necessitadas.” Este prémio destina-se a financiar investigações na área das doenças neurodegenerativas, as chamadas doenças do envelhecimento como Parkinson e Alzheimer que têm estado a aumentar em todo o mundo.
A atração intelectual Os prémios, no valor de 200 mil euros cada, visam financiar projetos científicos desenvolvidos em território nacional mas podem ser atribuídos tanto a investigadores portugueses como as estrangeiros que procurem Portugal para fazer ciência ou até a parcerias internacionais. Incentivam, assim, um espírito de cooperação que já era assinalado em 2013 por João Lobo Antunes, quando entre as primeiras candidaturas contaram cientistas de 11 países. “Não estamos de forma alguma isolados. E as pessoas não vêm só pelos instrumentos de investigação e aparelhos que temos. Os portugueses que querem voltar e os estrangeiros que nos procuram vêm pelo ambiente, pela culturalidade, porque encontram cá pessoas com quem falar. Os nossos institutos de investigação, e falo a nível nacional, já têm muita gente interessante, que sabe pensar, que sabe fazer a pergunta e achar a resposta. Há uma atração intelectual pelo país.”
Desde então, foram distinguidos oito projetos inovadores, da ciência fundamental à mais aplicada e em diferentes instituições científicas do país. Logo na primeira edição, o prémio Melo e Castro foi atribuído a António Salgado, do Instituto de Investigação em Ciências da Vida e da Saúde – Laboratório Associado da Universidade do Minho, pelo desenvolvimento de novas estratégias de tratamento de lesões com biomateriais e células estaminais, duas áreas de ponta da medicina regenerativa. Já o prémio Mantero Belard coube à investigadora Ana Cristina Carvalho Rego e à equipa do Centro de Neurociências e Biologia Celular, da Universidade de Coimbra. O objetivo do projeto financiado era perceber melhor os processos de stresse oxidativo e disfunção mitocondrial dos doentes com por detrás da doença de Huntington, um distúrbio neurológico e hereditário atualmente sem cura.
Em 2014, o prémio Melo e Castro distinguiu o investigador Moisés Mallo, cientista de origem espanhola hoje investigador principal no Instituto Gulbenkian da Ciência. Destinou-se a financiar um projeto dedicado ao estudo de novos substratos celulares para terapia de regeneração espinal. Já na área das doenças neurodegenerativas, o prémio Mantero Belard distinguiu neste ano o investigador Rodrigo da Cunha e a sua equipa, do Centro de Neurociências e Biologia Celular, da Universidade de Coimbra, por um projeto que visava perceber melhor os processos moleculares na base da perda de memória de doentes com Alzheimer, nomeadamente a função de recetores A2A da adenosina no hipocampo.
Na terceira edição dos prémios, em 2015, o número de candidaturas ultrapassou pela primeira vez as duas centenas. O prémio Melo e Castro foi entregue a Ana Pêgo e à sua equipa do Instituto Nacional de Engenharia Biomédica, pelo projeto “COMBINE – Estratégia regenerativa combinatória para potenciar a regeneração axonal e melhorar a recuperação funcional depois de lesão medular”. O prémio Mantero Belard distinguiu António Ambrósio por um projeto na Universidade de Coimbra também sobre a doença de Alzheimer, desta vez centrado num dos primeiros espelhos da doença no organismo: alterações na retina.
Já no ano passado, duas novas áreas. O prémio Melo e Castro foi atribuído a Célia da Conceição Duarte Cruz, da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, por um projeto mais focado num dos efeitos colaterais das lesões vertebromedulares que comprometem também a qualidade de vida dos doentes. Em causa disfunções na bexiga e também no esfíncter que requerem uma melhor identificação e gestão na clínica. Já o Prémio Mantero Belard foi atribuído a um projeto em torno de outras das grandes doenças neurodegenerativas do nosso tempo, a doença de Parkinson. Coordenado pela investigadora Sandra M. Cardoso, do Centro de Neurociências e Biologia Celular da Universidade de Coimbra, o projeto entra por uma nova linha de investigação, que sugere que existe uma componente “infecciosa” na doença de Parkinson relacionada com a nossa flora intestinal, ou seja, que existirão bactérias não patogénicas no nosso organismo que produzem e libertam neurotoxinas que afetam o funcionamento dos neurónios. Esta ligação entre intestino e cérebro tem sido cada vez mais estudada.
Este ano será a quinta edição dos prémios, lançados já pelo atual provedor da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa Pedro Santana Lopes, que em 2013 justificou a iniciativa com aquilo que é um dos pilares centrais da existência da instituição: promover cuidados de excelência. “Há mais de cinco séculos que a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa assumiu a missão de apoiar toda a população, de melhorar a qualidade de vida dos que mais precisam, promovendo mais saúde, mais cultura, mais educação. É, por isso, nosso desafio procurar as respostas mais adequadas a cada momento, de maneira muitas vezes pioneira, para cumprir este objetivo”, disse então.
João Lobo Antunes, na entrevista que concedeu em 2013 ao i, lembrava que as respostas da ciência podem demorar, mas são indispensáveis para que se avance para melhores tratamentos. “Não podemos ter um pensamento messiânico em relação à ciência. Um dos precursores do método científico distinguia dois tipos: a frutífera e a iluminífera. A frutífera era a ciência que se destinava a fazer bem e a ter impactos na vida das pessoas. Mas a primeira necessidade é conhecer os mecanismos das doenças, se é um processo inflamatório, genético ou outro. Grande parte da investigação é na vertente do conhecimento fundamental. Só conhecendo bem os processos é que podemos partir abordagens terapêuticas.”