Incêndios. Jorge Gomes barrou reforço de meios

Desde janeiro, a Autoridade Nacional de Proteção Civil fez vários pedidos ao MAI para reforço dos meios aéreos. Todos ficaram sem resposta ou foram devolvidos pelo ex-secretário de Estado por falta de ‘suporte legal’. 

O ex-secretário de Estado da Administração Interna, Jorge Gomes, condicionou a atuação da Proteção Civil no terreno durante o combate às chamas de vários incêndios e travou todos os  pedidos feitos pela Autoridade Nacional da Proteção Civil (ANPC), desde janeiro, a solicitar reforços de meios, segundo vários documentos a que o SOL teve acesso. 

Além disso, apurou o SOL, Jorge Gomes terá tido forte interferência na escolha dos comandantes distritais, cuja equipa foi nomeada quase na totalidade dois meses antes do incêndio de Pedrógão. Muitos têm ligações ao Partido Socialista e pouca prática no combate a incêndios de grandes dimensões.

Desde janeiro de 2017 que a Proteção Civil alertou várias vezes a tutela para o nível extremo de severidade –  no início do ano o índice de seca registado era o mesmo do mês de junho de 2016 – tendo reiterado o pedido ao ex-secretário de Estado do reforço de meios aéreos, como helicópteros pesados e ligeiros. 

Em declarações ao SOL, Jorge Gomes nega ter recebido os pedidos da ANPC para  reforços de meios aéreos. 

No entanto, o SOL teve acesso a alguns dos ofícios enviados pela ANPC a Jorge Gomes, com propostas de preços e de prazos para as contratações de reforços de meios aéreos.  A algumas destas propostas, o ex-secretário de Estado não deu luz verde e outras  acabaram por ser devolvidas à Proteção Civil. Recusas do ex-secretário de Estado que continuaram mesmo após a tragédia de Pedrógão Grande, onde morreram 65 pessoas e meses antes dos incêndios que lavraram o país entre 15 e 17 de outubro, que roubaram a vida a 45 pessoas.    

É o caso de uma proposta enviada ao MAI para que fossem contratados quatro meios aéreos ligeiros durante dois meses, até ao final da fase mais crítica de incêndios (fase Charlie). Este pedido de reforço de quatro meios aéreos  para 400 horas de voo tem a data de 14 de julho – um mês depois de Pedrógão – e traduzia um custo entre um milhão e 1,2 milhões de euros (acrescido de IVA), dependendo da empresa a quem seria contratado o aluguer dos aviões. A proposta acabou por ser devolvida à ANPC com o MAI a alegar que «o projeto apresentado não tem suporte legal», lê-se no documento.

Um mês mais tarde, a 14 de agosto, a Proteção Civil voltou a insistir com o MAI a pedir o reforço de meios aéreos. Nesta tentativa, a ANPC voltou a enviar várias propostas de empresas para contratar quatro meios aéreos ligeiros para um período de 45 dias num total de 400 horas. O custo do aluguer dos aviões rondava os 935 mil euros (acrescido de IVA) mas não mereceu qualquer resposta do gabinete de Jorge Gomes e as verbas não foram libertadas. 

Recorde-se que o Estado tem seis aviões Kamov, cada um deles com capacidade para transportar quatro mil litros de água e com autonomia de 180 minutos. Mas destes aviões apenas três estão operacionais: dois estão avariados desde 2015 e desde então deixaram de integrar o dispositivo de combate a incêndios; e o terceiro Kamov teve um acidente em 2012 e ainda não foi reparado. 

O reforço de meios aéreos pedido pela ANPC seria para substituir os três aviões Kamov que estão inoperacionais.  

Além do travão ao reforço de meios, o SOL sabe que qualquer decisão de funcionamento e de gestão corrente da ANPC tinha de ter o conhecimento e o aval de Jorge Gomes. Incluindo decisões que poderiam ser tomadas pelo presidente da ANPC, Joaquim Leitão.

 Já depois das duas tragédias, o novo ministro Eduardo Cabrita viria a anunciar a contratação de 17  meios aéreos, duplicando as aeronaves disponíveis até 31 de outubro (próxima terça-feira). O investimento rondou 1,4 milhões de euros. 

‘Jobs for the boys’

A somar ao travão dos vários pedidos de reforço de meios, não foram poucas as vezes que, segundo comandantes da Proteção Civil, o ex-secretário de Estado interferiu na ação daquela entidade durante o combate às chamas. Vários comandantes da Proteção Civil ouvidos pelo SOL dizem que o ex-secretário de Estado fez uma «politização em toda a estrutura operacional», como foi o caso da escolha de 20 dos 36 comandantes distritais três meses antes da fase Charlie e que «condicionou a atividade» da ANPC.  

Ao SOL, várias fontes contam que  os novos comandantes distritais foram pré-selecionados pelo secretário de Estado Jorge Gomes. Contactado pelo SOL, o ex-governante nega que tenha tido qualquer interferência na escolha dos comandantes distritais.  

Mas, de acordo com os despachos de nomeação, em apenas seis distritos – Beja, Bragança, Coimbra, Faro, Santarém e Vila Real – foi mantida a mesma estrutura. Dos 36 comandantes distritais, 14 foram demitidos tendo sido substituídos por pessoas com formações sem ligações à área, incluindo licenciaturas em Desporto e Lazer ou em Direito.  E sem experiência de comando. 

Muitos têm ligações… ao PS. É o caso do segundo comandante distrital de Leiria, Mário Cerol, que é licenciado em Direito e, segundo o seu despacho de nomeação, a «experiência mais relevante», foi ter sido advogado e comandante dos bombeiros de Alcobaça. Cerol – que durante horas assumiu o combate às chamas de Pedrógão sem experiência de fogos florestais de grande dimensão  – foi mandatário do PS à Câmara de Alcobaça, em 2009.

Ex-secretário de Estado e ex-ministra dizem que não viram o relatório 

Mas a guerra aberta entre a ANPC e o MAI não se fica por aqui. Depois de conhecida a análise e as recomendações do relatório de peritos da comissão independente, que tece duras críticas aos operacionais da Proteção Civil e aos procedimentos adotados, a ANPC fez um relatório interno a denunciar vários «erros», «omissões» e «contradições» nas conclusões dos peritos. 

A ANPC frisa neste documento, que o jornal i noticiou em primeira mão, que ninguém do topo do comando da Proteção Civil foi ouvido pela comissão e que a fita de tempo não foi parada, ao contrário do que diz o relatório dos peritos. Razões que levam os comandantes a questionar a isenção do relatório que, em parte, foi trabalhado pelo ex-comandante nacional José Manuel Moura, substituído no cargo por Rui Esteves, um dos principais alvos das críticas.   

 A ANPC pediu à ex-equipa ministerial que fosse tornado público este documento de contraditório, por se impor um «cabal esclarecimento  por respeito às vítimas e ao bom nome dos operacionais» da Proteção Civil, mas o relatório não chegou a ver a luz do dia e não foi remetida qualquer resposta da tutela à entidade. 

Questionado pelo SOL, o ex-secretário de Estado diz não ter conhecimento de qualquer relatório, que não o leu porque o documento não lhe chegou. Jorge Gomes diz ainda ter contactado a ex-ministra Constança Urbano de Sousa, que também não terá conhecimento do documento.   

O relatório da ANPC tem a data de 16 de outubro e chegou ao Ministério da Administração Interna no dia 17 de outubro, um dia antes da saída da equipa ministerial  – de acordo com um aviso de receção do MAI a que o SOL também teve acesso. No entanto, confrontado pelo SOL, o Ministério diz que só recebeu o documento no dia 19 de outubro.