Crianças mais caladas, sossegadas, que nunca levantam problemas podem ser crianças em sofrimento. No entanto, como não se dá por elas, e até dá jeito que assim seja, normalmente são as que suscitam menos preocupações. Pelo contrário, crianças mexidas, desatentas, irrequietas e que têm dificuldade em fazer a mesma coisa durante muito tempo, ou seja, crianças impossíveis e muitas vezes saudáveis, são frequentemente sinalizadas como problemáticas ou hiperativas.
O moderno conceito de Perturbação de Hiperatividade com Défice de Atenção (PHDA), inicialmente reservado aos profissionais de saúde mental, associado ao medicamento que o controla, veio trazer inúmeras vantagens a pais, educadores, professores, médicos e farmacêuticas. A exigência e falta de tempo do dia-a-dia fez com que ambos se tenham banalizado e estejam na boca de todos os que lidam com crianças. O que é muito perigoso.
Já me deparei com casos de crianças de três anos que são consideradas hiperativas pelos pais ou educadores, simplesmente porque cresceram e mudaram de comportamento. Começaram a descobrir o mundo e as suas capacidades e estão tão entusiasmadas que têm dificuldade em fazê-lo calmamente, de acordo com o que esperam delas ou da disponibilidade e paciência que lhes é reservada.
No serviço de psiquiatria e saúde mental de um hospital onde trabalhei, eram raros os pais acompanhados em consulta que não tinham um ou mais filhos a serem seguidos em pedopsiquiatria, medicados com a famosa Ritalina. A Ritalina é um medicamento indicado para crianças com mais de seis anos e diagnóstico de PHDA. Tem efeitos milagrosos de melhorar a atenção e concentração, bem como de reduzir o comportamento impulsivo. Quem, no seu íntimo, principalmente pais e professores – também eles muitas vezes em situações difíceis – não desejaria esta mudança mágica para o seu filho ou aluno mais irrequieto?
Muitas vezes os pais chegam com o filho ao médico já desesperados e incentivados por educadores ou professores igualmente desesperados, na esperança de uma solução para a sua criança-problema. Alguns médicos, que naturalmente gostam de dar uma resposta rápida e eficaz, acabam por recorrer à solução mágica. Assim ficam todos satisfeitos.
Todos menos a criança. Das duas uma: ou a criança é saudável, feliz e irrequieta e ao ser medicada fica limitada na sua espontaneidade, expansão e expressão; ou está de facto em sofrimento e a forma de o demonstrar simplesmente desaparece. Aparentemente fica tudo bem. A criança fica sossegada e silenciosa, os pais e professores ficam mais calmos e o médico cumpre o seu papel. Mas para onde foi a razão que levava a criança a reagir assim? Para onde foi o que a preocupava ou aquilo com que tinha dificuldade em lidar? Isso pouco importa porque ficaram todos bem na fotografia. Só a criança, que foi ao médico supostamente para melhorar, ficou pior.
Nem sempre as crianças são fáceis, muitas vezes a vida é exigente e o tempo é escasso. Mas não se pode permitir que continuem a ser vítimas do desgaste e do facilitismo que lhes corta o que muitos adultos já não têm: a energia, a impulsividade, a irreverência e a possibilidade de serem devidamente ouvidos, abraçados e acompanhados, para se tornarem crianças e adultos mais felizes.