O que têm Vladimir Lenine, a legionella e a Web Summit em comum? Regressaram a Portugal esta semana. E a relação do atual governo com o triunvirato possui contornos de um surrealismo assinalável. No centésimo aniversário da revolução de outubro, Portugal tem um governo suportado por comunistas a patrocinar algo como a Web Summit. António Costa consegue namorar o PCP no parlamento e estar numa sala que celebrou hoje a abertura da Bolsa de Nova Iorque – até trouxeram o sininho! Não querendo deixar de aplaudir o espetáculo de um primeiro-ministro que bafeja contra o "neoliberalismo" ao sábado e aplaude o "grande capital" ao domingo, reconheço que a Web Summit fez o circo ir um nadinha longe demais.
Na abertura do evento, Costa garantiu que "Portugal é um óptimo sítio para investir", ao mesmo tempo que o seu ministro da Economia era lido nos jornais rejeitando a possibilidade de diminuir a carga fiscal, pois as prioridades são a "consolidação orçamental" e a "redução da dívida".
Em Lisboa, onde se realiza a dita Summit, 35 pessoas foram vítimas de um surto e, até agora, faleceram duas. O bastonário da Ordem dos Médicos fala em "falta de manutenção" porque a "legionella evita-se e consegue prevenir-se de forma eficaz desde que todas as saídas e todos os circuitos sejam atempadamente limpos", o que levanta uma questão. Na Altice Arena – cujos donos, segundo o PCP, são contra a Constituição –, o sr. primeiro-ministro discursava de relógio da Apple em riste, enquanto num hospital público se morria por falta de manutenção nos ar-condicionados? O ministro respetivo rejeita esse cenário e prefere apontar uma "falha técnica".
Lisboa torna-se, então, não apenas na capital mundial da tecnologia, mas na primeira capital mundial da tecnologia em que se morre por "falha técnica". Escrito seria hilariante; vivido é verdadeiramente trágico. Um executivo que escolheu financeiramente beneficiar os funcionários públicos que nele votam em vez dos serviços públicos que todos usam.
Costa, nisto, é tributo maior à revolução de outubro que qualquer comunista português. A muito soviética fusão entre partido, governo, Estado e república nunca foi tão manifesta; é aliás assim que o PS consegue dizer, como se fosse a coisa mais democrática do universo, que votar contra o seu Orçamento do Estado é votar contra os portugueses.
Fernando Medina, outro visionário, comparou os descobridores do século XV – que passavam meses sem ver terra – aos 'empreendedores' diante de si, que não passam dois minutos sem ver o telemóvel. Se Camões escutasse semelhante alegoria, cegaria certamente do outro olho. Nós, que ainda cá estamos, devemos continuar cegos de todo. Depois de um regime de 41 anos em que uma falsa grandeza deu cobertura à máxima pequenez de um país – a ditadura –, prosseguimos, alegres e contentes, a preferir o nada que tudo é. Outro poeta chamava-lhe 'mito', hoje chama-se treta. Dizem que dá imensos votos.