Lenine. “Volte daqui a dez anos e veja o que fizemos da Rússia”

Meu principal propósito ao ir de Sampetersburgo a Moscovo era encontrar e conversar com Lenine. Eu estava muito curioso para vê-lo e estava disposto a ser hostil com ele. Encontrei uma personalidade totalmente diferente de tudo que eu esperava encontrar

Lenine não é um escritor; seus livros não o retratam. Os pequenos panfletos e ensaios que circulam em Moscovo com o seu nome, cheios de falsas ideias sobre a psicologia do trabalho no Ocidente e defensores obstinados da proposta impossível que é a profetizada revolução marxista que aconteceu na Rússia, mostram muito pouco da real mentalidade do Lenine que eu encontrei. De vez em quando, há alguns momentos de inspirado brilhantismo, mas em geral estes escritos não expressam mais do que as ideias e as frases do marxismo doutrinário. Pode ser que isso seja necessário. Talvez seja essa a única linguagem que o comunismo tem; mas uma rutura com este novo dialeto seria inquietante. O comunismo de esquerda é a coluna vertebral da Rússia hoje; infelizmente é uma coluna sem partes flexíveis, uma coluna vertebral que não consegue ser dobrada a não ser com extrema dificuldade e que deve ser dobrada mediante adulação e deferência.

As dez mil cruzes de Moscovo ainda brilham à luz da tarde. Sobre um pináculo visível do Kremlin, as águias imperiais estendem suas asas; o governo bolchevique tem estado muito ocupado ou muito indiferente para tirá-las dali. As igrejas estão abertas, as imagens de santos são uma indústria florescente, e os mendigos todavia cortejam a caridade nas portas. O famoso santuário milagroso da Nossa Senhora Ibérica, do lado de fora da Porta do Salvador, estava particularmente cheio. Havia muitas mulheres do campo, incapazes de entrar na pequena capela, beijando as pedras do lado de fora.

Do lado oposto, em um painel de gesso colocado em frente a uma casa, está aquela agora célebre inscrição colocada por um dos primeiros governos revolucionários em Moscovo: “A religião é o ópio do povo.” O efeito que a inscrição produz é enormemente reduzido pelo fato de que o povo na Rússia não pode ler.

Os arranjos prévios para a minha conversa com Lenine foram demorados e irritantes, mas cá estava eu a caminho do Kremlin na companhia do Sr. Rothstein, uma velha figura dos círculos comunistas londrinos, e um camarada americano com uma câmara enorme, que era também, suspeitei, um agente do Ministério das Relações Exteriores russo.

O Kremlin como eu me lembrava em 1914 era um lugar muito aberto, tanto quanto o Castelo de Windsor, com peregrinos e turistas em grupos e casais passeando através dele. Mas agora é fechado e difícil de entrar. Houve uma grande confusão com passes e autorizações antes de que pudéssemos passar ainda pelos portões externos. Mas nós fomos inspecionados em quatro ou cinco salas de guardas e sentinelas antes de sermos recebidos. Isto pode ser necessário para a segurança pessoal de Lenine, mas o coloca fora de alcance da Rússia e, mais grave talvez, se há de facto uma ditadura, isso põe a Rússia fora de seu alcance. Se as informações são filtradas até ele, devem ser filtradas abaixo, e então podem vir muitas alterações no processo.

Encontramos finalmente Lenine, uma pequena figura numa grande mesa, numa sala bem iluminada com magnífica vista. Achei a sua mesa um bocado desarrumada. Sentei-me a um canto dela, e o homenzinho – seu pé mal chegava ao chão quando ele se sentou na ponta da cadeira – virou-se para conversar comigo, colocando os braços ao redor de uma montanha de papéis. Fala um inglês excelente, mas, pensei, era característico da atual condição das relações russas que o Sr. Rothstein se metesse ocasionalmente na conversa. Enquanto isso, o americano começou a trabalhar com sua câmara, e, discreta mais persistentemente, tirava fotos. A conversa estava demasiado interessante para que isso pudesse ser incomodativo. Esquecemos os cliques bastante depressa.

Cheguei com a expectativa de me deparar com um marxista escolástico. Não encontrei nada de parecido. Tinha ouvido falar que Lenine gostava de dar lições às pessoas; certamente não o fez nesta ocasião. Muito se fala do seu riso, uma gargalhada que poderia ser prazerosa ao princípio e cínica ao final. Não ouvi nada disso. Lenine tem uma agradável, mutável, face amorenada, com um sorriso vivo e o hábito (talvez por alguma dificuldade em ver) de semicerrar um olho quando para de falar; não se parece muito com as fotografias que se conhecem dele, porque é uma dessas pessoas cuja mudança de expressão é mais importante que os traços; gesticulou um pouco com suas mãos sobre os papéis amontoados enquanto falou, e fala muito rapidamente, muito perspicaz sobre todos os assuntos, sem nenhuma pose ou pretensão ou reserva, como um bom homem de ciências falaria.

A nossa conversa foi um movimento de dois temas. Um, de mim para ele: “O que acha que está a fazer na Rússia? Que tipo de Estado está a tentar criar?” O outro, dele para mim: “Por que a revolução socialista não começa na Inglaterra? Por que vocês não trabalham pela revolução? Por que vocês não estão a destruir o capitalismo e a construir o Estado Comunista?” Estes temas entrelaçavam-se, afetavam um ao outro, iluminavam-se. O segundo trouxe de volta o primeiro: “Mas o que vocês estão fazendo da revolução socialista? Está sendo um sucesso?” E este de volta para o segundo: “Para ser um sucesso, o mundo ocidental deve participar. Por que não o faz?”

Antes de 1918 todo o mundo marxista pensava na revolução socialista como um fim. Os trabalhadores do mundo tinham que unir-se, derrotar o capitalismo e serem felizes no final desse caminho. Mas em 1918, os comunistas, para sua própria surpresa, encontravam-se no comando da Rússia, com o desafio de produzirem o seu próprio futuro. Tinham ultrapassado condições de guerra, invasões, bloqueios, etcétera, uma pretensa desculpa para o atraso na produção de uma nova e melhor ordem social, mas é claro que começam a perceber das imensas dificuldades que implicam os métodos marxistas de pensamento. Em uma centena de pontos -já apontei o dedo em um ou dois deles – eles não sabem o que fazer. Mas um comunista comum simplesmente perde o controle se você duvida que tudo está ser feito, sob o novo regime, da melhor e da mais inteligente maneira. É como uma dona de casa irritadiça, que quer que você reconheça que tudo está em perfeita ordem no meio de uma mudança de casa. É como uma dessas agora esquecidas sufragistas (mulheres que lutaram pelo voto feminino) que costumavam prometer-nos o paraíso na Terra tão logo escapássemos da tirania das “leis feitas por homens”. Lenine, por outro lado, cuja franqueza muitas vezes deixa seus discípulos sem ar, acabou, recentemente, com a última pretensão de que a revolução russa seja algo mais do que a inauguração de uma época de experimentação sem limites. “Aqueles que estão empenhados na formidável tarefa de vencer o capitalismo”, escreveu, “devem estar preparados para tentar método após método até achar as respostas que sirvam melhor aos seus objetivos.”

Iniciamos a nossa conversa com uma discussão sobre o futuro das grandes cidades sob o comunismo. Queria ver até onde Lenine estava a par da decadência das cidades na Rússia. A desolação de Sampetersburgo fez-me entender de algo que eu nunca tinha me dado conta: que toda a forma e a existência de uma cidade são determinadas pelo comércio e pelo mercado, e que a abolição deles torna nove entre dez edifícios, em uma cidade comum, direta ou indiretamente sem significado ou sem uso. “As cidades ficarão muito menores”, admitiu. “Serão diferentes. Sim, bastante diferentes.” O que, eu sugeri, implicaria em um enorme desafio. Isto significaria riscar todas as cidades existentes e substituí-las. As igrejas e os grandes edifícios de Sampetersburgo se tornariam então como os de Novgorod a Grande (cidade russa) ou como os templos de Paestum (Grécia). A maioria das cidades se dissolveria. Ele concordou alegremente. Acho que o confortou achar alguém que entendesse a necessária consequência do coletivismo, o que até mesmo muitos dos seus camaradas não entendiam. A Rússia tem que ser reconstruída inteiramente, tem que se tornar uma nova coisa…

“E a indústria também tem que ser reconstruída inteiramente?”, perguntei-lhe. “Deu–se conta do que já está já a acontecer na Rússia? A eletrificação da Rússia?”, interrogou-me. 

Lenine, que, como um bom marxista ortodoxo, rejeita todos os “utópicos”, sucumbiu afinal a uma utopia, à utopia dos eletricistas. Ele aposta todas as suas cartas num esquema de desenvolvimento de grandes estações de energia na Rússia para chegar a todo o lado com luz, transporte e energia industrial. Duas regiões experimentais já foram eletrificadas, disse. Alguém pode imaginar um projeto mais corajoso numa terra enorme e plana, de florestas e camponeses ignorantes, sem energia hidráulica, e com o comércio e a indústria em seu último suspiro? Projetos de eletrificação parecidos estão em desenvolvimento na Holanda e estão a ser discutidos na Inglaterra e, nestes centros densamente povoados e industrialmente desenvolvidos, pode-se concebê-los como êxitos, económicos e totalmente benéficos. Mas sua aplicação na Rússia representa um ganho ainda maior sobre a imaginação construtivista. Não consigo imaginar nada disso a acontecer nesta bola de cristal turva da Rússia, mas este pequeno homem no Kremlin pode; ele vê as decadentes ferrovias substituídas por um novo transporte elétrico, vê novas estradas a estenderem sobre o país, vê um novo e feliz comunismo industrial. Enquanto conversávamos, ele quase convenceu-me a compartilhar a sua visão.

“E você fará tudo isso com os camponeses fixados em sua terra?”, voltei a indagar. “Mas não só as cidades serão reconstruídas; toda a agricultura também será”, garantiu o homem do Kremlin.

“Mesmo agora,” disse Lenine, “toda a produção agrícola da Rússia não vem dos camponeses. Nós temos agricultura em larga escala em alguns lugares. O governo já controla grandes propriedades com trabalhadores no lugar de camponeses, onde as condições são favoráveis. Isso pode ser ampliado, primeiro para outras regiões, e depois para outras. Os camponeses de outras regiões, egoístas e ignorantes, só saberão o que está a acontecer quando chegar a sua vez…”

Pode ser difícil derrotar o campesinato russo em massa; mas por partes não há dificuldade. À menção dos camponeses, a cabeça de Lenine chegou perto da minha; como se me sussurrasse algo de confidencial. Como se os camponeses nos estivessem a ouvir.

“Não é apenas a organização material da sociedade que você tem de construir”, argumentei, “mas a mentalidade de todo o povo. Os russos são, por hábito e tradição, negociantes e individualistas; suas almas devem ser remodeladas para este novo mundo ser conquistado.”. Lenine perguntou-me se eu tinha visto do trabalho educativo que está ser feito. Elogiei algumas das coisas que vi. Assentiu e sorriu com prazer. Tem uma confiança ilimitada no seu trabalho.

“Mas são apenas esboços de coisas que estão a começar”, disse.

“Volte em dez anos e veja o que nós fizemos na Rússia”, respondeu.

Extratos da entrevista a H. G. Wells