Os primeiros ecos foram em letra de chumbo e saíram na grande imprensa da época, e foram evoluindo entre as revoluções de fevereiro e de outubro. “Os jornais publicaram notícias, quer sobre a revolução de fevereiro quer sobre a revolução de outubro, embora essas notícias tenham tido um pendor diferente, mais informativas e descritivas sobre a situação no caso da revolução que levou ao derrube do czar e francamente hostis no caso da subida ao poder dos bolcheviques”, faz notar o historiador João Madeira. Essa hostilidade era expressa não só em relação aos projetos concretos dos bolcheviques, como o abandono da guerra, mas sobretudo devido às características diferentes, rudes, brutais e radicais que os grandes meios de comunicação social atribuíam aos dirigentes bolcheviques, percebendo que estavam a tratar de gente que até ali nunca tinha chegado ao poder em nenhum país do mundo.
“Mas apesar dessa deformação e do coro hostil da generalidade da imprensa republicana, os ecos da revolução ateavam as esperanças em algumas camadas da população e setores políticos. O jornal anarquista ‘A Sementeira’ refere-se à revolução bolchevique, em janeiro de 1918, como ‘a nova grande revolução’. E numa intervenção no aniversário da Voz do Operário, o representante da União Operária Nacional fala de ‘um novo clarão revolucionário que já se vê noutros países’. É evidente que estas notícias têm repercussões diferentes conforme as camadas sociais que atingem”, sublinha João Madeira.
É preciso ver que a conjuntura política criada pela guerra e pelas dificuldades económicas torna fértil o terreno, “para uma revolução que muitos apenas sabiam que era a mais radical de todas as revoluções que até aí tinham acontecido”, denota José Pacheco Pereira.
“No início de 1917, quando começam a chegar a França os primeiros contingentes portugueses, sente-se o agudizar da miséria e da pobreza, a curva dos salários reais começa a distanciar–se da inflação, muitos setores da população estão praticamente na miséria”, refere João Madeira. Multiplicam-se os ataques a lojas e armazéns devido à fome. “Mas os sindicatos, apesar da vaga de greves, e de muitas delas terem caráter quase insurrecional, descuram a necessidade de uma ação política. O aparecimento da Federação Maximalista Portuguesa e do seu órgão de imprensa ‘Bandeira Vermelha’ pretende colmatar essa lacuna. Mas a imediata repressão policial, com a prisão do seu principal ativista e editor do jornal, o ferroviário Manuel Ribeiro, vai cortar as asas à ação do movimento”, conta João Madeira.
Para Pacheco Pereira, um dado fundamental para perceber a repercussão das notícias e a forma como a revolução russa foi entendida pelo movimento operário em Portugal só pode ser explicado “pelas suas características endógenas”. Depois de um predomínio do velho Partido Socialista no incipiente movimento operário, “observava-se o predomínio crescente das correntes anarquistas e sindicalistas revolucionárias no movimento”, garante Pacheco Pereira, que acrescenta: “A forma como se lê a Revolução Russa nesses setores tem que ver com as coordenadas que dava a esses sindicalistas e militantes operários a sua própria situação.”. Apesar disso, “houve a perceção clara de que se estava perante uma revolução diferente que radicalizava a própria revolução”. A curiosidade pelo que se passa na Rússia é obviamente diferenciada conforme a penetração do operariado e de setores proletarizados, como os assalariados rurais.
“A curiosidade e simpatia são claramente maiores na zona de Lisboa, nos seus arredores, no Alentejo e também no Porto”, explica Pacheco Pereira – tudo polos em que o sindicalismo revolucionário e os setores anarcossindicalistas estavam mais presentes. O domínio destas correntes vai ter efeitos consideráveis nos desenvolvimentos subsequentes da influência da revolução e até no aparecimento do Partido Comunista Português. “O domínio da CGT é tão grande que era suposto ser ela a organizar os trabalhadores manuais, e ao recém-formado PCP, a 21 de março de 1921, cabia organizar os trabalhadores não manuais”, diz Pacheco Pereira. É de notar que o PCP se funda na sede do Sindicato dos Escritórios e a notícia do seu aparecimento aparece no influente jornal anarcossindicalista ‘A Batalha’. O otimismo é tão grande sobre a expansão da revolução mundial que um dos principais impulsionadores do PCP e seu primeiro líder, Carlos Rates, afirma com grande modéstia: ‘Se para fazer a revolução em Portugal falta apenas um Lenine português, eu ofereço-me para o papel.’ E não só se oferece como começa a redigir uma série de decretos com que pretendia concretizar a revolução”, ironiza Pacheco Pereira.
O conhecimento mais próximo da realidade da Revolução Russa é feito através de sindicalistas que tomam contacto com a Internacional Sindical Vermelha (Profintern, constituída em 1921 e dissolvida em 1937). “De alguma forma, ela é mais influente nas disputas internas que se vão suceder em Portugal, no meio do movimento operário, que até a Internacional Comunista: ela vai ser a primeira razão de conflito entre sindicalistas revolucionários. mais influenciados pelo comunismo. e a CGT e as correntes anarcossindicalistas”, relata Pacheco Pereira.
Esta situação específica portuguesa vai ter durante anos consequências na forma como o PCP atua. Tanto Pacheco Pereira como João Madeira sublinham que o facto de os comunistas portugueses não advirem, como na maioria dos países, de uma cisão nos partidos socialistas e sociais-democratas, vai fazer com que sejam muito mais resistentes “à bolchevização” que se dá, a partir de certa altura, na maioria dos partidos comunistas. Talvez também tenha contribuído a distância para que algumas características que advinham de uma maior ligação e proximidade geográfica não se impusessem da mesma forma em Portugal.
Quando é feita a chamada “reorganização” do PCP, nos início dos anos 40, com a libertação de muitos militantes presos no Tarrafal pela Amnistia Comemorativa dos Centenários, quem tem a ligação internacional é a direção anterior, a que ficou conhecida como “o grupelho provocatório”, garante Pacheco Pereira, que nota que só são reatadas posteriormente relações com Moscovo com a direção em que pontificam Álvaro Cunhal, Júlio Fogaça, Pires Jorge e Sérgio Vilarigues, com a intermediação dos comunistas espanhóis.
Numa entrevista que fiz há décadas ao antigo secretário-geral do PCE Santiago Carrillo, ele descreveu-me um encontro que teve com Álvaro Cunhal em Portugal em que o dirigente comunista português “chegou de bicicleta e estava tão magro que as orelhas pareciam quase transparentes”, recordava. Essa reunião teve lugar dada a importância que Portugal tinha para a logística dos comunistas espanhóis e como forma de fazer sair quadros do PCE para fora de Espanha. Algumas das primeiras mensagens entre comunistas soviéticos e portugueses tiveram como correio o PCE.