No dia 29 de setembro de 1917, do seu refúgio numa cabana nas matas da Finlândia, Lenine redige uma carta ao comité central do seu partido: “A História não nos perdoará se não assumirmos o poder.” Farto de esperar resposta e que as suas opiniões não sejam discutidas pelo comité central do Partido Bolchevique, que dirigia, Lenine volta a enviar cartas nos dias seguintes. Mas a direção não lhe responde nem discute as suas posições, e nem as divulga às organizações. Com a barba cortada e uma tosca cabeleira postiça, Lenine decide abandonar o seu esconderijo, onde estava desde as manifestações de julho, perante o mandado de prisão que tinha sido emitido contra ele, e voltar à capital, Petrogrado.
A situação de violência e insegurança na cidade era crescente. No primeiro de outubro, os habitantes atónitos de um prédio do bairro de Lesnoi encontraram barbaramente assassinado um homem e os seus três filhos. O crime tinha disparado na cidade de Petrogrado, mas este era tenebroso e tinha a particularidade de ter sido cometido no mesmo edifício em que tinha sede a milícia cidadã, organizada pela Duma (parlamento). As pessoas estavam revoltadas: “Como era possível estar seguro?” se o próprio governo e o parlamento eram totalmente incompetentes. Um multidão em raiva reuniu–se à noite, arrombou a sede da milícia e destruiu-a.
Um pouco por toda a Rússia, o caos e a miséria propagavam a violência como uma centelha. Tal como em 1905, a extrema-direita faz dos judeus os bodes expiatórios: em 2 de outubro, na cidade de Roslava, na zona de Smolensk, uma multidão de “centúrias negras” (milícia de extrema-direita nacionalista) fez um progrom (um ataque a judeus), matando várias pessoas.
A 3 de outubro, o estado-maior do exército russo evacuava Ravel: o último bastião entre as tropas alemãs e a capital, Petrogrado, cai. O governo planeia retirar em segurança algumas fábricas estratégicas e aproveitar para se livrar de algumas das unidades mais revolucionárias, enviando-as para a frente de combate. Há quem garanta que quer deixar os alemães tratar da revolta na cidade. O Soviete proíbe essa manobra demasiado suspeita. No dia 9 de outubro, perante a insistência na manobra do general que comanda as tropas do governo em Petrogrado, Trotsky consegue aprovar no plenário do Soviete da capital a criação do Comité Militar Revolucionário para defender a cidade dos invasores, das tropas direitistas do general Kornilov e do próprio governo provisório. A 10 de outubro, Lenine chega disfarçado à reunião do CC. Durante toda a semana tinha conseguido que parte das organizações do partido o apoiassem. Na direção máxima do partido é aprovada uma resolução, com dez votos a favor e dois contra, os de Kamenev e Zinoviev, que considera que depois da conquista, pelos bolcheviques, da maioria nos Sovietes “é inevitável a insurreição armada e que a situação está madura para ela”.
Os dois derrotados não se conformam e denunciam, no jornal dirigido por Máximo Gorki, aquilo a que chamam “aventureirismo suicidário”. É às claras que os bolcheviques e o Comité Militar Revolucionário tentam ganhar as unidades da capital. No executivo do congresso Pan-Russo dos Sovietes, no dia 14 de outubro, o líder dos mencheviques, Fyodor Dan, ironiza: “Devemos perguntar aos camaradas bolcheviques qual o objetivo da sua política?”. E acrescenta acidamente: “Estão a apelar ao proletariado revolucionário para que atue? Exijo uma resposta clara, ou um sim ou um não.” Do seu canto, Riaznov responde pelos bolcheviques: “Exigimos paz e terra.”
Por seu lado, o governo de Kerensky estava convencido de apanhar os bolcheviques em contrapé. “Se eles atuam”, garantiu o ministro da Imprensa, “faremos uma operação cirúrgica que estripará o abcesso de uma vez por todas.”
Apesar de todo o labor de Lenine, numa reunião na sede do Soviete de Petrogrado, no Palácio de Smolni, apesar de os delegados das 15 das 18 unidades já não reconhecerem o governo, metade delas não se comprometia em nenhuma ação armada, e as que estavam dispostas só o fariam com ordens emanadas do congresso dos Sovietes, marcado para 25 de outubro.
A 24 de outubro, às 2h30 da madrugada, o governo de Kerensky dá o primeiro passo e concentra as tropas que tem disponíveis no Palácio de Inverno, espera regimentos leais vindos da frente para reprimir os bolcheviques e reforça a sede do governo com três destacamentos de junkers; cadetes das escolas militares; soldados de um batalhão da morte feminino; uma bateria de artilharia montada; vários batalhões de cossacos; uma unidade de ciclistas; e um regimento de fuzileiros de veteranos feridos de guerra. O chefe do governo manda algumas dessas tropas atacar a gráfica onde se imprimem alguns jornais bolcheviques e destruir as máquinas. Os bolcheviques, que depois da maratona de reuniões dormiam na sede, são alertados por um telefonema. Era Trotsky do outro lado da linha: “Kerensky está na ofensiva.” Os bolcheviques tinham agora um pretexto para contra-atacar sem esperarem pelo congresso dos Sovietes. Um destacamento com metralhadoras retomou as gráficas, pondo em fuga os cadetes, e conseguiu imprimir uma edição especial do “Pravda”. Mas o outro lado não estava parado: o Estado Maior ordenou que se levantassem as pontes da cidade, ficando apenas aberta a ponte do palácio, controlada por forças leais ao governo. No entanto, a multidão tomou uma das pontes, expulsando soldados cadetes, e outra, que devia ser ocupada pelo batalhão da morte feminino, foi abandonada pelas tropas leais quando se aperceberam que estavam sob o alcance das baterias da Fortaleza de São Pedro e São Paulo. O Comité Militar Revolucionário mantinha o controlo de duas das quatro principais pontes da cidade. Mas a situação política continuava confusa, porque não parecia haver uma ordem clara para conquistar o poder. Quando, às 21 horas, o comissário do comité revolucionário do regimento Pavlovski, Osvald Denis, notou movimentações de tropas lealistas, deu ordem de reforçar com barricadas as posições na Ponte de Troitski. Mas recebeu imediatamente uma mensagem do CMR para levantar as barricadas. Não obedeceu.
Lenine, farto de tanta hesitação, saiu da casa onde o tinham escondido, nos su-búrbios operários da cidade, deixando em cima da mesa uma nota: “Fui-me embora para o sítio onde não queriam que eu fosse.” E lá foi, com o seu camarada finlandês Elino Rahja em direção ao Smolni, a sede do soviete. Estava disfarçado com uma peruca e um chapéu. Atravessaram meia cidade à noite. Junto à Estação da Finlândia cruzaram-se com uma patrulha montada de tropas lealistas que, depois de os observarem, os deixaram passar, pensando que se tratava de um ferido e um bêbado. Por momentos, tudo poderia ter acabado ali para ele.
As primeiras revoltas e a Revolução de Fevereiro
Estes últimos anos tinham sido vertiginosos. A guerra tinha voltado a levar a Rússia à beira da catástrofe. A derrota frente às tropas japonesas em 1905 tinha gerado um movimento revolucionário de insurreição para democratizar o país que, a custo, a monarquia absoluta do czar, Nicolau ii, tinha conseguido reprimir, com muitas dezenas de milhares de mortos nas ruas e centenas de milhares de presos e deportados para a Sibéria. A Rússia era um gigante com pés de barro, com milhões de camponeses sem terra, há poucos anos libertados de uma servidão que os fazia estarem obrigados a trabalhar e ficar na terra dos nobres latifundiários, mas não libertados da miséria. Nas principais cidades, a industrialização rápida tinha criado importantes núcleos operários que viviam também em condições miseráveis. A Rússia era também um império em que centenas de outros povos estavam subjugados. Depois da repressão da tentativa de democratização em 1905, a entrada na i Guerra Mundial, em 1914, tinha deixado o país à deriva, esvaído em sangue pelos combates, deixando no solo mais de três milhões de mortos. A miséria aumentava nas cidades. Os salários desciam. As condições de vida, já más, tornavam-se impossíveis. As greves operárias multiplicaram-se em fevereiro de 1917 e, apesar das ordens repetidas para reprimirem os manifestantes, desta vez as tropas não tinham sido suficientemente convictas na repressão e a insurreição foi paulatinamente contagiando as unidades militares. No meio da revolta dos marinheiros de Kron-stadt, um soldado explicou ao almirante, que tentava em vão retomar o comando da unidade: “Isto não é um motim, camarada almirante. Isto é uma revolução.” Os marinheiros que tinham visto, no ano anterior, centenas dos seus camaradas fuzilados por amotinação protegeram os oficiais que respeitavam e mataram expeditamente meia centena dos que tinham sido mais impiedosos. Na sequência desta revolução, o czar é forçado a resignar, passando a coroa ao irmão Miguel, que pergunta ao novíssimo governo provisório se lhe conseguem garantir a segurança. Perante a negativa desgostosa destes, o irmão do czar, com pouca vontade de ser mártir, renuncia também.
Na primeira revolução russa coexistem dois poderes: a Duma, o parlamento russo eleito por voto censitário, em que só, por lei do monarca, só os homens russos podiam votar, tendo o voto dos eleitores mais ricos mais peso que o voto dos eleitores mais pobres; a isso opõe-se uma instituição criada na primeira revolta de 1905, os sovietes (concelhos em russo), com delegados eleitos nas fábricas, nas unidades de produção e, agora, nos quartéis. O governo do país escolhido pela Duma ficou nas mãos dos liberais e dos socialistas moderados. Estes defendiam a manutenção da participação da Rússia na guerra, ao lado da França e do Reino Unido, e resistiam aos pedidos por parte dos camponeses de uma redistribuição mais equitativa das terras.
Entretanto são libertados os presos políticos e muitos exilados regressam à Rússia, entre os quais Lenine. Ao contrário da maioria do seu partido bolchevique, naquele mês de abril, o revolucionário russo não pretendia apoiar o governo provisório; estava convencido, ao contrários dos socialistas moderados, que a Rússia tinha de sair da guerra, fazer uma reforma agrária e sobretudo estava em condições, sendo o elo mais fraco do capitalismo internacional, de passar rapidamente “da revolução burguesa”, para uma “revolução em que operários e os camponeses” pudessem ter o poder e que inaugurasse uma era de revoluções mundiais para que a guerra mundial tinha criado condições. Teimosamente, Lenine começa a lutar no seu partido pelas suas Teses de Abril. Os seus camaradas recusavam escutá-lo. Teve dificuldades em publicá-las sequer no órgão central do partido, o “Pravda”. Os socialistas moderados, que consideravam que apenas podia tomar o poder a classe operária em países capitalistas mais desenvolvidos, rotularam-no de “anarquista” e “antimarxista”. Pare eles, era óbvio que o papel dos operários estava em ajudar a burguesia russa a desenvolver-se e democratizar um país quase feudal. Contra a “intransigência” de Lenine em aceitar a colaboração com a burguesia, o ministro dos Correios, Tsereteli, justificou, no dia 4 de junho em sessão do soviete, a colaboração da direção deste órgão com a burguesia: “Não há”, disse, “nenhum partido que seja capaz de dizer: deem-nos o poder.” Ouviu-se então um aparte espontâneo do fundo da sala: “Sim, há esse partido.” Era Lenine.
Os canhões falaram
Quando Lenine chega ao Smolni, acompanhado do seu camarada finlandês, os soldados de guarda não queriam deixá-lo entrar porque não tinha passe de entrada. Foi a insistência da multidão que se concentrava à entrada que forçou os militares revolucionários a ultrapassar a exigência burocrática.
Paulatinamente, as tropas revolucionárias vão tomando os pontos estratégicos. Havia horas, tinham tomado a estação telegráfica. Tomam a central elétrica e cortam a energia aos edifícios governamentais. Um companhia do sexto batalhão de engenheiros toma a Estação de Nikolayevsky. Com apenas a lua como iluminação, um dos combatentes testemunha o momento. Quando passam por um monumento simbólico, “ante esta visão, o penúltimo imperador parecia agarrar–se ao cavalo, paralisado pelo horror”.
Às 3h30 da manhã do dia 25 começa-se a ver uma enorme sombra negra a subir o rio Neva. O cruzador Aurora estava em reparações perto da cidade. Quando a tripulação revolucionária soube da revolução, desobedeceu ao governo que os mandou para alto-mar e resolveu subir o rio para se aproximar do centro da cidade. O capitão recusou-se inicialmente a cooperar e foi colocado em prisão no camarote. Mas com medo que os marujos não soubesse fazer a perigosa manobra e que o navio ficasse destruído, suplicou-lhes que o deixassem dirigir o barco, e assim aconteceu.
No Smolni, Lenine discutia com os seus camaradas quem comporia o novo governo que apresentariam ao congresso dos sovietes. Não lhe agradava o nome de governo e muito menos o de ministro. Trotsky sugere: “Que tal comissários do povo?”. Lenine sorriu e aquiesceu: “Cheira incrivelmente a revolução.” Lenine propôs Trotsky para comissário do Interior. Este hesitou: temia que os inimigos da revolução o atacassem pelo facto de ser judeu. “Que importância tem isso?”, retorquiu Lenine. “Há sempre uma data de idiotas”, argumentou o futuro comissário do Interior. “E nós pomo-nos ao nível dos idiotas?”, perguntou Lenine. Ao que Trotsky voltou a argumentar: “Por vezes, é necessário contar com a estupidez, porque ela tende a dificultar as coisas no início.” O futuro chefe do Exército Vermelho ficou assim como comissário dos Assuntos Externos.
Kerensky conseguia entretanto fugir do Palácio de Inverno, escondido dentro de um carro da embaixada dos EUA, para ir ter com tropas leais fora da cidade.
Às 14h35, Trotsky anunciava ao soviete de Petrogrado que o governo provisório já não mandava: “Em nome do Comité Militar Revolucionário, declaro que o governo provisório já não existe.”
Nessa altura, ainda estavam 3 mil tropas a defender a sede do governo. Paulatinamente, foram desertando. Às 22h40, o cruzador Aurora disparou uma salva de aviso. O ministro Semion Maslov, dos Socialistas Revolucionários de direita, gritava numa linha telefónica para alguém da Duma: “Todo o meu desprezo para uma democracia que soube nomear-nos, mas não é capaz de nos defender.”
Enquanto se ouviam os canhões, os deputados de direita da Duma e os moderados do soviete resolveram dirigir-se para o Palácio de Inverno, “para morrer junto ao governo provisório”. A condessa Sofia Panina, dos Kadetes (partido liberal), declarou: “Vou colocar-me à frente de um canhão.” Em filas de quatro, algumas centenas de representantes moderados avançaram resolutos, com pães e salsichas nas mãos, para alimentar os sitiados da sede do governo, até que foram parados por um destacamento militar. “Exigimos passar”, gritaram Shreider e Popovitch. Os marinheiros recusaram dar-lhes passagem. “Disparem se quiserem, se têm coragem de disparar sobre russos e camaradas”, gritava a pequena multidão. Os marinheiros recusavam-se a disparar, até que, segundo o relato do jornalista americano John Reed, apareceu um marujo mais irritado que disse: “Se insistem, vamos açoitá-los.” Perante essa ameaça, Popovitch reclamou: “É indigno de nós sermos fuzilados. Voltemos à Duma para salvar o país e a revolução.” E assim regressaram com as salsichas.
Às 5 da manhã do dia 26 votava-se a proclamação escrita por Lenine “aos operários, soldados e camponeses” a prometer a paz, a terra e o pão.