Mikhail Bulgakov: “O Mestre e Margarita”
A grande obra do escritor russo só vai ser publicada na Rússia em 1966, muitos anos depois de ele a ter escrito e de ter morrido prematuramente aos 49 anos, vítima de uma doença hereditária nos rins. Nela, o Diabo, o seu criado e um gigantesco gato preto vão visitar a Rússia soviética e ver nela as coisas para além das aparências e das hipocrisias. O maravilhoso mundo novo que se afirmava em construção convivia com muitos dos pequenos grandes defeitos das pessoas, mascarados por fraseologia revolucionária. Fica na memória a visita do animado trio à Associação dos Escritores Soviéticos. Em diálogo, interrogam-se sobre a razão pela qual o local é tão popular: “Há muitos e talentosos escritores?”, pergunta um. “Não, é simplesmente porque aqui é dos poucos sítios onde se come bem”, responde outro. Demorou mais de 12 anos a escrever “O Mestre e Margarita”, entre 1928 e 1940. Em 1939, já cego, tinha de ditar à mulher, Yelena, os capítulos finais.
Sobrevive milagrosamente ao estalinismo. Conta, salvo erro, Ilya Ehrenburg, que quando apresentava no teatro a sua peça “Os Dias de Turpin” recebeu uma crítica demolidora de alguém num jornal oficial do partido. Numa época em que o regime combatia todos os “desvios” do mundo, inventando uma série deles que os próprios desviados não conheciam, parecia uma sentença com consequências graves. Mas, uma noite, o próprio Estaline ligou-lhe a dizer o quanto tinha apreciado o seu trabalho. Isso não o impediu de ser sempre um crítico do regime soviético e de ter tentado emigrar para fora do país. O autor da “Guarda Branca” tinha num outro pequeno livro profetizado a construção do homem novo. Nessas páginas, a ciência soviética consegue cruzar um proletário com um cão e obtém um novo ser cheio de qualidades de trabalho e de fidelidade confiável, mas que só tem um pequeno defeito: para além de largar pelo, sempre que vê um gato num árvore descontrola-se e tenta apanhá-lo.
O apartamento do escritor, em Moscovo, no qual se passa parte da trama de “O Mestre e Margarita”, virou local de culto. No final da década de 2000 foi transformado no Museu Bulgakov.
Nikolai Ostrovski: “Assim Foi Temperado o Aço”
O romance de Nikolai Ostrovski é autobiográfico. O herói desaparece prematuramente, como o escritor, que morreu aos 32 anos, cego e paralítico devido aos inúmeros ferimentos que recebeu na Guerra Civil Russa. Sobre o sentido da existência, o escritor soviético escreveu: “A vida é aquilo que de mais valioso possui um homem, só lhe é dada uma vez e há que saber vivê-la de modo que, no final dos dias, não se sinta o pesar pelos anos passados em vão, para que não haja angústia sobre os anos perdidos e seja possível dizer no momento da morte ‘toda a minha vida e todas as minhas forças foram dadas à causa mais nobre deste mundo, a luta pela libertação da humanidade’.”
Em 2002, numa sondagem, pediu-se a estudantes universitários chineses que escolhessem um modelo de herói para as suas vidas. A lista estava circunscrita a dois nomes extremados; dela constavam o milionário Bill Gates e a personagem de Ostrovski, o proletário e combatente da cavalaria vermelha Pavel Korchagin. Verificou-se um empate na pergunta sobre quem seria o herói ideal para os jovens: deu 45% ao comunista e 45% ao milionário. Já quando se inquiria quem tomariam como modelo de vida, os estudantes universitários chineses deram a maioria ao capitalista: 44% escolheram Gates, 27% ambos e apenas 13% optaram pelo herói comunista.
É preciso realçar que a presença de um herói de ficção nessa sondagem chinesa se explica devido a uma situação particular. Um dos maiores êxitos de sempre da televisão chinesa é uma série baseada no livro“Assim Foi Temperado o Aço” e realizada em 2000 – um produto de sucesso, rodado na Ucrânia com loiríssimos actores locais, propriedade da empresa privada Shenzhen e difundido por uma televisão chinesa nominalmente comunista. A série retrata um herói comunista com algumas diferenças assinaláveis em relação ao livro em que se baseia: Pavel bate-se contra os excessos de violência no Exército Vermelho e casa-se com a sua amada Tonia. A burguesa é a primeira paixão de Pavel no livro. Nas páginas, a revolução separa-os; na série televisiva, esse final é reescrito.
Eduard Limonov: “O Poeta Russo Prefere os Grandes Negros”
Limonov é um caso em que a ficção empalidece ao lado da realidade. Filho de um medíocre oficial subalterno da polícia política e de uma operária, vive uma infância miserável num país destruído pelo pós-guerra. A marginalidade e uma navalha são para ele uma forma de afirmação. Entra nos círculos intelectuais dissidentes da mesma forma que os outros se afundam em bebedeiras intermináveis, estampadas nas páginas do “Moscovo-sobre-a-Vodka” do escritor Vénecdit Erofeiev. A especificidade do niilismo de Limonov é que ele nunca perde a capacidade de ver sobriamente a merda que o rodeia e vai para além do cinismo dos burocratas intelectuais que vivem do regime e dos dissidentes que pululam nas ruas, num excesso e numa entrega à vida que o libertam dos muros que o encerram. Uma ânsia de foder e de viver que o fazem transcender tudo. Apaixonado pela jovem e bela amante de um apparatchik, corta os pulsos à porta do apartamento dela para lhe mostrar a sua paixão total.
Faz-se passar por judeu para sair com a amante da União Soviética. Numa altura em que o regime aceitava todas as mentiras para se livrar para sempre de elementos indesejáveis, consegue ir para os Estados Unidos da América. Aí detesta de igual forma o sonho americano e os dissidentes oficiais. Odeia neles o sucesso amestrado. Mistura inveja com acidez e ironia. Os livros que editará no futuro são grandes obras em que a ficção é a história da sua vida. Uma espécie de Charles Bukowsky russo, mais ácido, telúrico e corrosivo. Desta forma, a biografia que sobre ele fez Emmanuel Carrère tem uma dimensão explosiva em que a vida do retratado parece correr a golfadas de sangue. Cenas duras, ordinárias e simbólicas, como a vez que Limonov enraba a amante enquanto vê uma entrevista televisiva do escritor dissidente e Nobel da Literatura Alexandre Soljenitsine.
A aura de maldade de Limonov está expressa nestes excessos. Um dissidente que se revolta contra o fim da União Soviética e que vai fundar um partido que mistura de uma forma provocatória uma estética nazi com a foice e o martelo. Estranho líder de um partido nacionalista extremista, acusado por muitos jornalistas de racista e homofóbico, que intitula um dos seus primeiros livros autobiográficos “O Poeta Russo Prefere os Grandes Negros”, em que descreve uma cena de pugilato com um sem-abrigo negro, quando vivia nas ruas de uma cidade norte-americana, em que as agressões acabam numa demorada cena de sexo.