“Queimem a bruxa!” e “Queima no inferno, bruxa! Jesus tem poder!”, gritavam os manifestantes enquanto queimavam uma boneca com a cara da filósofa norte-americana Judith Butler. Poderia ser em Portugal ou Espanha nos velhos tempos da Inquisição do século XVI, mas foi nas ruas de São Paulo, Brasil, na passada terça-feira. Em 2017.
Não mais de 70 manifestantes reuniram-se em frente ao Serviço Social do Comércio (Sesc) para protestarem contra a conferência que Judith Butler iria dar sobre o seu novo livro relativo à questão palestiniana, Caminhos Divergentes, editado pela Boitempo. Neste, a filósofa critica o sionismo a partir da filosofia judaica, sendo, porém, acusado de anti-semitismo pelos seus opositores. Contudo, o protesto não foi motivado pelas posições da filósofa em defesa do povo palestiniano, mas contra os seus trabalhos em estudo de géneros, área onde é mundialmente reconhecida.
Num cartaz de um manifestante podia-se ler que “a ideologia de género vem destruir os nossos valores”. “Não podemos permitir que a promotora dessa ideologia nefasta promova no nosso país as suas ideias absurdas, que têm por objetivo acelerar o processo de corrupção e fragmentação da sociedade”, lia-se na petição online a exigir o cancelamento da conferência. Apesar das suas ideias reaccionárias, a petição recolheu mais de 360 mil assinaturas. Entre os manifestantes foram comuns os gritos pela “família” e “tradição”. Ainda assim, o protesto deparou-se com um contra-protesto de apoiantes de Butler, cujo objetivo era “defender a democracia” e garantir que a conferência não seria cancelada por intimidação. Rapidamente os manifestantes pró-”família” e “tradição” ficaram em menor número.
“Defendemos a democracia, e isso está expresso no direito à manifestação do livre pensamento de Butler”, disse Walter Faceta, membro do coletivo Democracia Corintiana. “Quem incita ao ódio deve ser combatido de maneira veemente”, complementou.
No final, a conferência de Butler acabou mesmo por acontecer e os participantes decidiram demonstrar, pela prática, o ideal de democracia que defendem com uma breve sessão de microfone aberto. “Estamos a ver uma questão delicada, a viver um período de censuras. Isso nos faz perceber como a democracia está em risco”, disse a antropóloga Jacqueline Morais Teixeira à plateia.
Na sua intervenção, Butler refletiu sobre o avanço do fascismo, racismo e supremacia branca no mundo, alertando para a “naturalização” das suas forças políticas. Referindo-se à América Latina, a norte-americana mencionou o impato que as correntes evangélicas têm na ascensão dos populismos e reacionarismos de direita. A filósofa desafiou a plateia a “pensar sobre as condições históricas em que nos encontramos” e a “opôr-nos à violência e dominação que muitos projetos nesse rubrica de significação representam”. “A luta pela liberdade é também a luta pela expressão e o pensamento livres, e não a reprodução dos poderes repressivos mesmo quando esse pensamento amedronta muita gente”, disse, e alertou para o facto de os “desejos democráticos” serem considerados “perigosos por quem, na verdade, almeja desviar a atenção da violência, da repressão e das desigualdades de Poder”.
Este protesto não foi único. Em 2015, Butler esteve em São Paulo para participar no I Seminário Queer e nessa altura também se deparou com protestos contra a sua presença, apesar de compostos por apenas 10 manifestantes. O contraste no número de manifestantes entre 2015 e 1017, mesmo que residual no total da população brasileira, corrobora os receios de muitos progressistas de esquerda de que uma nova onda reacionária e conservadora está a avançar pelo Brasil, apoiada e alimentada pelo atual governo do presidente Michel Temer. “É uma franja muito fundamentalista de extrema-direita”, disse João Manuel de Oliveira, professor visitante da Universidade Federal de Santa Catarina e coordenador de um grupo de Estudos de Género do ISCTE-IUL, em declarações ao i. Para o investigador, “estes movimentos começaram a adquirir um espaço político desde o golpe de direita [o impeachment contra Dilma Roussef]” e duvida que os seus membros “tenham lido sequer uma página escrita por Butler”. “Confundem as ideias de Butler com ataques à família”, complementou. Os manifestantes empunhavam cartazes onde relacionavam as ideias de Butler com a defesa da pedofilia.
“Somos as filhas das bruxas que não queimaram”
Este slogan do movimento feminista mundial comprova a importância que a perseguição das mulheres pela Inquisição ainda tem nos dias de hoje. Para Oliveira, “a utilização da significação de ‘bruxa’ é muito séria. As acusações de bruxaria foram uma das maneiras de se avançar com um genocídio de mulheres”, mas também um claro “sinal para todas as mulheres e para quem transgrida as normas” vigentes. O investigador considera que a “escolha não é inocente e revela uma intenção de não abdicar de normas de género violentas”, revelando “o pensamento fundamentalista e violento”, para além do facto de terem escolhido a Inquisição “diz tudo sobre eles [o movimento conservador]”.
Os séculos passaram, mas a violência – psicológica, física, verbal, sexual, laboral – ainda faz parte do quotidiano de muitas mulheres por todo o mundo. No caso do Brasil, em 2016 foram registados 4,6 mil casos violentos contra mulheres, uma média de um feminicídio a cada duas horas, segundo o Anuário Brasileiro da Segurança Pública. O Brasil ocupa o 5º lugar no ranking mundial de violência contra as mulheres, segundo as Nações Unidas. Para piorar a situação, se considerarmos a violência contra transexuais, o Brasil lidera o ranking mundial de assassinatos, segundo dados da organização não-governamental Transgender Europe.
Ao longo da sua carreira, Judith Butler publicou mais de 20 obras, entre as quais a mundialmente reconhecida “Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity”, publicada em 1990. Nesta, analisa “o género como um ato repetido no quadro de determinadas normas, que geram uma aparência de susbtância”, regulando “o modo como esses atos podem ser lidos”, explicou Oliveira. “O género passou a ser algo que se faz em vez de ser algo que se tem”, complementou. Contudo, os trabalhos de Butler tentam “expandir a noção de humano para englobar todos os humanos”, ou seja, abordam assuntos que supostamente interessam a uma minoria, democratizando-os, como fez, por exemplo, com a questão do género. Noutras obras, Butler abordou fenómenos como a precariedade e de como é possível “fundar-se formas de democracia radicais” que ultrapassem o mero ato de votar.