Quando cheguei a Barcelona, uma semana antes do referendo à Catalunha, na Gran Via de Las Cortes Catalanas, avenida gigantesca que atravessa a cidade, nos quarteirões perto da Praça de Espanha cada edifício tinha umas poucas bandeiras catalãs nas janelas e apenas um morador tinha colocado uma bandeira espanhola. Depois de uma estada, intermitente, de quase um mês, quando regressei a Portugal no dia 7 de novembro, a paisagem da rua expressava as mudanças que tinham ocorrido na Catalunha e as notícias nos jornais mostravam os enormes efeitos que o ‘procés’ Catalão tinha tido em toda a Espanha. Neste microclima de dois quarteirões da gigantesca avenida coexistiam agora muitas dezenas de estreladas catalãs com dezenas de bandeiras espanholas.
Os partidos catalanistas foram desde sempre maioritários no parlamento catalão, mas durante os anos 80 a reivindicação da independência estava abaixo dos 16%; nos anos 90, atingiu os 20%; número que aumentou pouco até ao ano 2012, em plena crise, em que disparou para mais de 40%. Em outubro de 2017, havia 48% de catalães favoráveis a um Estado independente e 43% contra.
Mas o que a rua mostrava era também uma outra realidade: os independentistas costumam gritar: «Els carrers seran sempre nostras», expressando o seu superior grau de mobilização pela causa da autodeterminação. A partir do 7 de outubro, essa situação modificou-se: a parte da população que se sente espanhola também começou a sair à rua, para além da meia dúzia de saudosistas do franquismo que o costumavam fazer. E isso nota-se em todo o lado, mesmo em bairros independentistas como Sants, é possível ver ao lado de uma livraria anarquista e independentista, La Ciutat Invisible, um estabelecimento de um homem que vende livros velhos e bugigangas decorado com uma gigantesca bandeira espanhola.
O confronto de bandeiras corresponde a uma realidade: há uma parte importante da população que não se revê no Estado espanhol, somado ao facto de 80% dos eleitores da Catalunha acharem que deveria poder haver um referendo negociado sobre a independência. Mas este ‘choque nacionalista’ também teve como efeito varrer os confrontos sociais e os problemas de corrupção para debaixo do tapete, em Espanha e também na Catalunha. Esta semana, o principal investigador do caso Gürtel afirmou, no congresso, que Mariano Rajoy terá recebido dinheiro dado ilegalmente pelas empresas para o financiamento do PP, e essas declarações nem passaram na edição do dia do noticiário da TVE, o que levou aos protestos de vários jornalistas da estação.
Isso que acontece em Madrid, também sucede na Catalunha: um dos partidos herdeiro da Convergència i Unió, que governou durante décadas a região sob a batuta de Jordi Pujol, acusado de corrupção, o atual PDeCAT (Partido Democrático e Europeu da Catalunha), de que é dirigente o presidente, Carles Puigdemont, têm-se mantido no poder apesar da corrupção, devido ao ganho de importância das reivindicações independentistas.
Por isso, o líder da ERC e vice-presidente do governo catalão, Oriol Junqueras, deixou uma carta escrita, que foi publicada, no dia seguinte à sua prisão, no diário catalão Ara, em que recusava a renovação da coligação com o PDeCat. Junqueras, apesar da insistência de Puigdemont de ser feita uma lista ‘Pelo País’ para concorrer às eleições, colocava a fasquia muito alta: só seria possível uma coligação se esta incluísse também os anti-capitalistas da CUP e os setores independentistas do Podem (ramo catalão do Podemos), que saíram recentemente do partido de Pablo Iglesias. O prazo de formalizar coligações esgotou-se a 7 de novembro. Não foi apresentada nenhuma nova coligação.
No entanto, apoiado pelo sentimento da rua, cerca de 440 000 catalães assinaram um abaixo-assinado por uma candidatura única independentista. Puigdemont tenta de novo encabeçar uma candidatura de convergência, mas desta vez em forma de uma lista de cidadãos. O prazo para essa hipótese esgota-se a 17 de novembro, e exige ser subscrita por 1% dos eleitores de cada círculo eleitoral da Catalunha.
Apesar da insistência, esta tentativa deverá também sair furada. Segundo a lei, uma lista de eleitores não pode receber financiamento público, como os partidos; não tem direito a tempos de antena nos órgãos de comunicação social e nem sequer pode ser convidada para debates na televisão. Para além disso, garante o diário El Periódico, Oriol Junqueras teria confidenciado a elementos da sua direção, que não queria mais alianças com os herdeiros de Pujol, porque eles estavam «ligados aos escândalos de corrupção na Catalunha», dos tempos em que governavam apoiando o PP e o PSOE.
É, portanto, quase garantido que PDeCat, ERC e CUP vão separados às eleições de 21 de dezembro. As sondagens dão que o partido de Artur Mas e Puigdemont terá apenas cerca de 25% dos votos da ERC.
Os setores independentistas garantem que isso não significa um desistir da agenda de autodeterminação, e que todos esses partidos vão propor pontos comuns nos seus programas, mas parece praticamente impossível que passem a campanha eleitoral sem se atacarem uns aos outros.
Acresce que a presidente do parlamento catalão, Carme Forcadell, admitiu – depois de há umas semanas garantir que «não haveria recuo na oposição ao 155» – no Supremo Tribunal, o que já tinha feito na prática ao dissolver o parlamento depois da aplicação do 155 por Rajoy: cumprir as determinações do Estado espanhol e não voltar a violar as normas constitucionais.
A libertação, sob fiança, de Forcadell e da maior parte dos outros membros da mesa – o elemento de Catalunya Sí que es Pot foi libertado sem nenhuma medida de coação – cria ainda outras consequências: corresponde a uma desautorização da acusação do Ministério Público espanhol, que está sob a tutela do governo, e também da Audiência Nacional, que aceitou a acusação e colocou metade do governo catalão na prisão preventiva, incluindo Oriol Junqueras.
Mas os efeitos não se ficam por aqui. Caso, como é previsível, o Supremo Tribunal chame a si todo o processo e liberte os governantes catalães, é provável que se assista a uma diminuição da tensão nas ruas, e que parte do cimento que liga os independentistas, com estas detenções injustificadas, deixe de existir.
Estes desenvolvimentos abrem caminho a novos cenários, em que a questão da autodeterminação, na melhor das hipóteses, fica sujeita a uma longa negociação constitucional, e que na Catalunha se voltem a afirmar outras divisões, como as que há entre a esquerda e a direita e sobre as várias questões sociais. A estes jogos partidários opõe-se uma rua hipermobilizada, que pode não achar graça a estas jogadas dos seus dirigentes.
No dia 11 de novembro, domingo, caso a manifestação independentista seja gigantesca, a autodeterminação e a contestação ao 155 podem manter-se como as questões políticas fundamentais nas próximas eleições catalãs. Pelo contrário, se a rua esvaziar, os alinhamentos políticos vão ser diferentes e a independência ficará marcada para depois da conclusão das obras da Catedral da Sagrada Família.