No universo formal e conservador da clássica, James Rhodes é um herege. Um caso pop de abertura e diálogo quando o cânone é o inverso. Dele sabe-se quase tudo além do embalo do piano.
Quando os escândalos sexuais de Hollywood, perpetrados por Harvey Weinstein, Kevin Spacey e, agora, Louis C.K., explodiram na opinião pública já a autobiografia de James Rhodes fazia revelações pouco comuns dentro do hemisfério em que se move.
Em criança foi violado pelo professor de ginástica. A denúncia está escarrapachada na autobiografia “Instrumental”, livro que tem como subtítulo “A vida depois do inferno da depressão – Memórias de um consagrado pianista” e que a revista Gramophone recusou escrutinar por considerar um somatório de clichés. A obra só foi publicada depois de um tribunal o ter autorizado, já que a ex-mulher acreditava que a sua acidentada história pudesse prejudicar os filhos. “Um livro sobre música e uma história de amor”, ainda assim, defendia ao Guardian.
Precisou de 25 anos para superar o trauma e foi o piano o são salvador da vida e da obra que viria a escrever após um percurso académico irregular, nada habitual em pianistas de renome. Rhodes está para o meio como Nicholas Sparks ou Paulo Coelho para a literatura. São o saco de boxe da crítica e do pensamento esclarecido mas agregam multidões de fãs e seguidores, contrariando a ideia de que a erudição é incompatível com a popularidade em larga escala e vive distante do tempo digital.
Rhodes tem milhões de cliques nas plataformas de streaming mais populares, o YouTube e o Spotify, mas não nos iludamos. A música é só o refrão desta peça. Na pauta de Rhodes, está uma vida que chama a atenção pelas fintas ao destino de um pianista de formação académica. Nas 88 teclas do piano cabe uma vida que durante muito tempo foi um drama. Apesar de se ter apaixonado pelo Concerto Imperador de Bethoven logo aos 7 anos e de se ter então interessado pelo instrumento, só aos 14 anos recebeu a primeira aula. Por pouco tempo, já que aos 18 abandonou os estudos para não se sentar à frente de um piano durante dez anos.
Ora, se a prática e aperfeiçoamento passam pela execução diária ao ritmo e disciplina de um atleta de alta competição, James Rhodes recuperou a boa forma e após o primeiro recital público, no Steinway Hall de Londres em 2008, assinou com a multinacional Warner. É esse o músico que chega a Portugal pela primeira vez para dois concertos integrados no Misty Fest, o festival itinerante de Outono que entra na ponta final. James Rhodes apresenta-se hoje na portuense Casa da Música e amanhã no lisboeta Centro Cultural de Belém.
Quando o silêncio der lugar ao delicado massajar das teclas pretas e brancas, ouvir-se-á aquilo que as mãos têm para dizer. O piano é o companheiro a quem James Rhodes se confessa sem precisar de palavras. Mas nós precisamos delas para escutar a história que ajuda a explicar a criação e obra. “Quando os pedófilos dizem às vítimas, como dizem quase sempre de uma forma ou de outra, que se alguma vez falarem sobre o caso, sofrerão consequências, o que estão a fazer é talvez um nível ainda pior que o ato físico de abuso em si. Estão a manipular as vítimas para serem cúmplices do abuso”, referia ao Guardian sobre “Survivors Voices: Breaking the silence on living with the impact of child sexual abuse in the family environment”, um relatório encomendado pela organização de apoio às vítimas de abusos sexuais One In Four, que revela os efeitos devastadores destes casos.
Qual figura pop, Rhodes usa a imagem pública a favor de causas, sobretudo aquela que lhe tocou na pele. Mas não só. Em Inglaterra, é um permanente inquieto com programas televisivos na BBC ou na Sky e Channel 4, incluindo “Don’t Stop The Music”, a base de uma campanha de angariação de instrumentos para as as escolas primárias públicas. A voz de Rhodes faz ainda ouvir-se na rádio e nos principais jornais. “É importante contar as coisas más que aconteceram e não mentir”, sintetizava em conversa com o Guardian.
E a música? Pode parecer um país distante mas em primeira instância é o rastilho da curiosidade sobre o londrino de 42 anos. Com seis álbuns na discografia, é um admirador de mestre Grigory Sokolov e toca obras de Bach, Rachmaninov, Chopin, Beethoven. Quando as luzes se apagarem, o concerto será apenas isso. Em paz e inquietação.