Aristides de Sousa Mendes ficou conhecido na História como “cônsul de Bordéus” mas esse posto foi, no entanto, o último em que prestou serviço. Antes, já levava na bagagem uma longa carreira na diplomacia escrita por vários continentes. O homem que assinou, à revelia de Salazar, 30 mil vistos de refugiados judeus que fugiam dos horrores ordenados por Hitler teve um fim de vida amargurado. A pedrada no charco de Aristides – o seu ato de humanismo – trouxe à família consequências implacáveis espraiadas pelas décadas seguintes e que ainda doem. É possível pôr uma imagem nisto que descrevemos. Durante décadas, a Casa do Passal – a moradia de família, em Cabanas de Viriato – foi continuamente votada ao abandono. Hoje pertence à Fundação homónima e está já na segunda e última fase de requalificação e musealização. Todos os anos, é visitada por descendentes dos judeus salvos pelo cônsul de Bordéus.
À medida que se reconstrói o Passal, a história de Aristides e da sua família tornou-se, entretanto, amplamente reconhecida. Desde 2004 que a desobediência de Aristides é reconhecida: é um dos “Justos entre as Nações” – um título oficial conferido pelo Yad Vashem, Memorial do Holocausto, em nome do Estado de Israel, a não-judeus que tenham arriscado a vida para salvar judeus durante a Segunda Guerra Mundial.
Mas além dos atos que a consciência lhe ditou, quem foi este homem? Não haverá, porventura, ninguém melhor para contar os meandros desta família do que um membro da própria. Foi o que pensou António Moncada de Sousa Mendes, um dos 39 netos do cônsul de Bordéus, que, após ter vivido a ouvir relatos do avô que “viveu os últimos anos como um refugiado no seu próprio país” quer ver a memória reabilitada sem quaisquer reticências. Pôs as mãos à obra – até porque levou este trabalho como uma “missão” – e escreveu o livro “Aristides de Sousa Mendes – Memórias de um Neto”, agora editado com a chancela da “Desassossego”.
Uma família peculiar Profundamente católicos, humanistas, com uma tendência generalizada para cursar Direito e similares – curiosamente, houve um trisavô de Aristides que ajudou a redigir a Constituição de 1822 e que o trineto iria desafiar mais de cem anos depois. Eram estas as raízes do cônsul de Bordéus, descendente da alta burguesia e nobreza do norte do país.
A genealogia da família não é, no entanto, fácil de ler – tal como as profissões, os nomes António, Aristides, José e César repetem-se nas gerações e, para ajudar à dúvida, há casamentos entre familiares. Aristides teve um irmão gémeo, César de Sousa Mendes. Os dois cursaram Direito na Universidade de Coimbra e seguiram a carreira diplomática: foram ambos admitidos como procuradores-régios em maio de 1910, cinco meses antes da implantação da República, que os irmãos “aclamaram”. “O passado da família não desapareceu, mas com a República chegou o futuro, e o futuro foi diferente, com outros princípios”, descreve António, o neto.
Aristides casou em 1907 com Maria Angelina Coelho de Sousa, conhecida por Gigi e que, até à data do casamento, raramente tinha saído de Beijós, uma aldeia ao lado de Cabanas de Viriato. Acabariam por ter 14 filhos nos vários locais do mundo em que Aristides foi cônsul: Zanzibar, Brasil, Espanha, Estados Unidos e Bélgica.
António Moncada de Sousa Mendes, autor das memórias agora publicadas, nasceu do sexto filho de Aristides – nascido em Zanzibar – e de uma filha de César. Ou seja, o seu avô paterno é Aristides e o avô materno César. “Ter dois avôs gémeos é raríssimo, mas explica-se”, diz António. “No século XIX e até meados do século XX as pessoas não circulavam muito. Muitas pessoas viviam no campo, não havia facilidade de transportes. Então as pessoas acabavam por se conhecer jovens, entre família e amigos. Essas situações aparecem muito nas árvores genealógicas, e não é só entre primos”. Uma coincidência que o deixa orgulhoso, ou não tivessem sido os seus avôs “dois grandes humanistas”. “Claro que neste livro refiro-me mais a Aristides, mas o César também está aqui atrás [mostra o interior da badana da contracapa do livro] e houve muita gente que pensava que era a minha fotografia”, conta António, não inibindo o sorriso.
O humanismo dos irmãos Sousa Mendes, embora potenciado pelos ideais cristãos, não era unicamente conduzido pelos mesmos, mas também por crença uma inabalável nos direitos do Homem e nas liberdades individuais. “Somos uma família crente, de fé. Cresci nesse meio, a pensar no bem que se possa fazer ao próximo e nos exemplos cristãos com a minha mãe e o meu pai, porque nasceram com essa religião. Se fosse noutro sítio se calhar eram muçulmanos ou protestantes”, descreve António.
E viver através do exemplo era espinha dorsal da família. No livro, António conta alguns episódios que ilustram esta forma de estar. Um dos mais curiosos diz, porventura, respeito ao seu próprio pai, que teve como padrinho de batismo um sultão muçulmano de Zanzibar.
Por todos os locais onde foram passaram, a numerosa família “fez mossa”. Acarinhados e reconhecidos por quem se iam cruzando, não esqueciam, no entanto, as raízes, e é sempre à Casa do Passal que voltavam nos verões, trazendo consigo pedaços dessa vida corrida em meio mundo. Mas passemos para a nomeação de Aristides de Sousa Mendes para Antuérpia.
Antuérpia, os judeus e Einstein “Antes de Bordéus, o posto imediatamente anterior do meu avô é Antuérpia, onde ele encontrou muitos judeus. E naquela zona, e na Holanda, há muitos descendentes de judeus portugueses expulsos por causa da Inquisição em 1496. A famosa sinagoga de Amesterdão foi construída por judeus portugueses, e também a de Antuérpia. Também houve comunidades de judeus portugueses a instalar-se no sul de França”, explica António. Terá sido nesta altura que o cônsul Aristides ganha especial empatia por este povo, sensibilidade que lhe será tão cara na “missão de Bordéus”.
Mas foi também em Antuérpia que a família vive alguns episódios dramáticos – como a morte de dois filhos, cujos corpos fizeram questão de transladar para Cabanas de Viriato –, mas outros tantos curiosos.
O casal Aristides e Angelina tinha por hábito organizar jantares – hábito que António mantém, sempre que possível –, e tradição a que não fugiram nos tempos passados em Antuérpia. Nesses encontros, passaram vários nomes dignos de menção pela mesa dos Sousa Mendes, como Maurice Maeterlinck, Nobel da Literatura em 1911. E é assim que, em 1933, Einstein é convidado a cear na casa do “cônsul de Bordéus”. “Einstein, um judeu alemão originário da Baviera, apareceu nessa altura por que ia apanhar um barco para atravessar o Atlântico. Já estava a viver na Suíça, mas resolveu deixar a Europa antevendo as perseguições aos judeus”, sublinha o autor.
Aristides acaba por se tornar num dos cônsules com mais experiência de Antuérpia. “Veio a ser um decano do corpo consular da cidade de Antuérpia, portanto era o diplomata mais antigo em funções e era um indivíduo com bastante prestígio. Ouvi muitas histórias da influência e da simpatia”, recorda António.
Pela mesma altura, o irmão gémeo, César, era ministro de Salazar. “César chegou a ser ministro dos Negócios Estrangeiros de Salazar. Em julho de 1932, quando chegou a Bruxelas, provocou surpresa… Afinal, tratava-se de uma réplica do cônsul Aristides. Seriam todos os portugueses assim tão parecidos?”, conta António, relatando que os funcionários que foram receber o avô materno à estação não estavam avisados do parentesco do cônsul com o ministro – que, tal como Aristides, também acabou destituído.
Últimos anos “Antes com Deus contra os homens do que com os homens contra Deus”. Foi com esta premissa em mente que Aristides de Sousa Mendes toma a decisão de, já como cônsul de Bordéus, desobedecer à circular 14 – assinada a 11 de novembro de 1939 e que impedia os cônsules de carreira de conceder vistos “aos judeus expulsos dos países da sua nacionalidade ou de aqueles de onde provêm” sem autorização prévia do Ministério dos Negócios Estrangeiros
Em 1939, Aristides percebeu que, se não desobedecesse, os que a ele recorriam iriam parar a campos de concentração. O primeiro visto seria concedido ainda em 1939, a Arnold Wizniter, um judeu, austríaco e antigo professor universitário. Foi admoestado pelo governo português, mas não vacilou. “Não participo em chacinas, por isso desobedeço a Salazar!”, assumiu o cônsul. No ano seguinte, em junho de 1940 e com a Segunda Guerra Mundial em plena eclosão, concede, com a ajuda dos filhos de do rabino Kruger – que viria a ser essencial no processo de reconhecimento dos atos do cônsul – cerca de 30 mil vistos.
Recebe como moeda de troca do governo de Salazar um processo disciplinar. É sentenciado a um ano sem exercer funções e obrigado a reformar-se findo esse período. Estávamos em outubro de 1940. Os anos seguintes seriam penosos para a família – sem o ordenado do patriarca e com a extensa prole, as dificuldades financeiras instalam-se e as portas dos “amigos” fecham-se. “Vive os seus últimos anos como um refugiado”, resume António. Morre em 1954, ainda não tinha 69 anos.
Uma marca para a vida António Moncada de Sousa Mendes – que, em 1970, se torna refugiado político pois o seu pai não queria que fosse para a guerra “matar e ser morto”, voltou para Portugal em 1985 e afirma que toda a família viveu as consequências da desobediência do avô e, ainda mais, com a borracha passada pela memória dos seus atos de humanidade. Na verdade, foi necessária pressão internacional para contar o que se passou em Bordéus, em junho de 1940 e que, em larga medida, é similar à mundialmente conhecida história de Oskar Schindler, difundida pelo filme “A Lista de Schindler”, de Steven Spielberg . Será que um dia os atos de Aristides receberão igual divulgação? “Um filme sobre ele devia ser feito, de facto. O que o meu avô fez não foi só por Portugal, foi para a humanidade. Mas na altura quando Spielberg fez a ‘Lista de Schindler’ não conhecia a história do meu avô, porque ficou tudo no segredo de Salazar”, acusa António.
Para já o foco é este: contar Aristides, sem meias omissões. E transformar a Casa do Passal num centro de Direitos Humanos.