«Eu sou tudo o que digo mas não digo tudo o que sou»

Esta frase, numa rua do Porto, transcreve a realidade daquilo que muitos de nós somos e fazemos: «Eu sou tudo o que digo mas não digo tudo o que sou». No entanto, é bem mais conhecido o provérbio «Faz como eu digo, não faças como eu faço», que incita a que os outros sigam os…

Esta frase, numa rua do Porto, transcreve a realidade daquilo que muitos de nós somos e fazemos: «Eu sou tudo o que digo mas não digo tudo o que sou».

No entanto, é bem mais conhecido o provérbio «Faz como eu digo, não faças como eu faço», que incita a que os outros sigam os nossos conselhos e a teoria que pregamos, ao invés de seguirem os nossos atos, a prática da nossa ação. Esta filosofia de vida implica uma contradição entre pensamento e ação, e transmite aos demais a noção de que a minha atuação não corresponde às minhas ideias ou, pelo menos, àquilo que, conscientemente, defendo como comportamento correto.

Acontece, também, que, quase sempre, somos muito rápidos a identificar os erros e defeitos dos outros, mas temos relutância em ver os nossos. É como diz Luís Osório, no seu romance A Queda de Um Homem: «Pensou na pouca complacência que as pessoas tinham com os defeitos dos outros, implacabilidade que poucos têm em relação a pecados próprios. Mesmo que os tenham de sobra, mesmo que saibam no fundo o tamanho do que neles é negativo, é sempre em quem está à volta que se concentram. Quanto mais se focam nos outros mais suavemente conseguem ver-se ao espelho – e se porventura encontrarem quem tenha defeitos conformes aos seus (um mentiroso se forem mentirosos; um fala-barato se forem fala-barato; um ganancioso ou sovina se forem uma coisa ou outra) só lhes restará declarar guerra a tão miserável criatura».

Se pensarmos um pouco, esta afirmação é bem verdadeira. Implicamos com os defeitos dos outros, sabendo que nos revemos neles como num espelho. Mas já Mário de Sá-Carneiro dizia: «Eu não sou eu nem sou o outro, / Sou qualquer coisa de intermédio». E é pena que, sabendo isto, atuemos desta forma. Muito mais beneficiaríamos todos – nós e os outros – se nos concentrássemos mais em nós próprios e na nossa vida do que na vida alheia e nos potenciais defeitos de pessoas que, por vezes, nem sequer conhecemos pessoalmente, mas sobre cuja vida gostamos de falar… Até porque como, sabiamente, diz Borges: «Não és os outros»!

Há um outro provérbio com o mesmo significado do já mencionado: «Bem prega Frei Tomás, faz o que ele diz, não faças o que ele faz». E, efetivamente, muitas vezes sabemos que determinados comportamentos seriam os mais corretos, mas optamos por atuar de forma diferente. E assim porque nem sempre as condições da vida real correspondem ao que é determinado, em teoria, como comportamento certo. Depois há também os nossos impulsos, a nossa vontade, o nosso livre-arbítrio, que fazem com que optemos por agir de forma distinta.

Porém, a frase pintada nesta parede diz algo distinto; diz que tudo aquilo que o autor afirma corresponde totalmente à sua maneira de ser, de pensar e atuar. Mas ressalva que não revela tudo o que é, que guarda muitos dos pensamentos e muita da sua vida interior, não deixando que os outros o conheçam na totalidade.

Ora, tal é natural, até porque mesmo nós próprios não nos conhecemos na totalidade e não chegamos a ser aquilo que gostaríamos. Como diz Jorge de Sena: «Cansada expectativa tão ansiosa / que ser só eu na minha vida espalha! / Na longa noite em que se tece a malha / do que não serei nunca, fervorosa // (…) // Viver é isto, quando se é só vida»…

E a maior parte de nós é assim. Há muito sobre nós que os outros não conhecem, mesmo aqueles que nos são mais próximos. O que é natural, porque o ser humano é tão complexo que é impossível, para qualquer outra pessoa, abarcar toda a complexidade de um indivíduo.

O exemplo mais óbvio e mais simples é-nos dado quando os vizinhos de um assassino testemunham nos telejornais que ele era uma pessoa muito calma e afável, que nunca tinham suspeitado de que ele seria capaz de tal ato. A repetição constante destas afirmações seria quase anedótica não fossem as consequências dramáticas dos atos praticados. Muitos destes atos têm que ver com o direito de uma pessoa fazer algo a outrem ou dela receber algo. E muitos daqueles crimes são praticados quase como delitos do coração…

 

Maria Eugénia Leitão

Escrito em parceria com o blogue da Letrário, Translation Services