A datilógrafa foi o fim da linha para Robert Mugabe

Aos 93 anos, Mugabe caiu às mãos de um golpe sem violência e causado pelas manobras de poder da sua mulher. Está a negociar uma saída airosa.

A história do golpe de Estado desta semana no Zimbabué mete um crocodilo, uma datilógrafa e um tipo de rei, Robert Mugabe, o chefe libertador que governou o país em todos os 37 anos da sua independência. Envolve também uma história de ambição política que, de tanto ambicionar, se derrotou a si própria. E uma revolta militar que, na realidade, deixa o poder nas mesmas mãos, a dos que libertaram o país na década de 1970 e nos últimos quase 40 anos o governaram ao ponto do caos humanitário, genocídio e desastre económico. Só não envolve sangue. Pelo menos por agora. De tanto autoritarismo, mesmo as forças mais fiéis a Mugabe abandonaram-no esta semana diante dos avanços militares. É apenas uma questão de dias até que seja declarado o fim oficial do Presidente. Aos 93 anos, Robert Mugabe chegou ao fim da linha.

O golpe deu-se ao final da tarde de terça-feira, mas foi anunciado na segunda, quando vários generais zimbabuanos, todos com raízes no movimento de libertação colonial da antiga Rodésia, anunciaram numa conferência de imprensa que não tolerariam mais purgas partidárias dos antigos guerrilheiros. O ajuntamento televisivo respondia à demissão do então vice-presidente, Emmerson Mnangagwa, na semana anterior. Mugabe demitiu-o acusando-o de práticas «traiçoeiras», mas o que a velha guarda do poder zimbabuano viu foi menos uma decisão do velho Presidente e mais uma manobra da sua mulher, Grace, a sua segunda mulher e antiga datilógrafa, que nos últimos anos de lenta senilidade do líder se vem preparando para lhe suceder, perturbando o equilíbrio de forças no país e procurando fortalecer um grupo de políticos mais novos, da primeira geração não guerrilheira.

Da ameaça ao golpe foi um ápice e os tanques começaram a marcha em direção a Harare ao início da tarde de terça. Polícia e guarda presidencial, supostamente sob mando de Mugabe, nada fizeram, e os generais apareceram já nas notícias da noite anunciando que não estavam a fazer um golpe contra o Presidente, mas apenas a «atingir os criminosos à sua volta que estão a cometer crimes e que estão a causar o sofrimento social e económico no país, para os apresentar à justiça».

O golpe pode até ser contra Grace, mas não deixa de ser um golpe: nas redes surgiram fotografias de funcionários governamentais detidos por militares, soldados nas ruas de Harare e o Presidente vive por estes dias numa espécie de detenção domiciliária informal, negociando com os generais através de mediadores vindos da África do Sul e de um padre católico, diz o Financial Times. Os militares dizem que Grace está também confinada ao Palácio Azul, a residência oficial, embora haja relatos de que saiu do país.

Ninguém na região ou no mundo pede expressamente a restituição de Mugabe – apenas a resolução pacífica do impasse. Primeiro, porque as ruas estão calmas e a sua liderança caiu sob o seu próprio corpo adoecido, mas também porque o líder dos últimos 37 anos voltou as costas às instituições internacionais. O seu aparente sucessor, o vice-presidente cuja demissão arrancou o golpe, promete restituir o país à ordem internacional. Mnangagwa quer há muito o regresso do Fundo Monetário Internacional, por exemplo, e reformas agrícolas que devolvam as terras à minoria branca a quem foram retiradas à força. O ‘crocodilo’, alcunha que Mnangagwa ganhou nos tempos da guerrilha, parece, para além disso, a grande esperança de estabilidade: tem a amizade do general Constantino Chiwenga, que liderou o golpe, e a do principal partido da oposição, com quem pode formar nos próximos dias um governo de transição. Mas as suas divisas reformadoras são duvidosas: participou com Mugabe nas limpezas étnicas da década de 1980 e defende uma governação ao estilo do partido único da China, país onde esteve há duas semanas, onde mantém fortes laços e que elogia frequentemente.

Ninguém sabe ao certo o que esperar agora de Mugabe. Na quinta-feira, o Presidente foi fotografado com o general Chiwenga durante as negociações no Palácio Azul e o Financial Times adianta que ele quer continuar no poder pelo menos até às eleições do próximo ano. Mas os militares e os próprios dirigentes do partido do poder, o ZANU-PF, desejam que saia já de cena. Dessa forma, Mnangagwa pode ser já consagrado Presidente em funções no Congresso do partido em dezembro. Em comunicado, mais de cem sociedades civis zimbabuanas exigiram a saída imediata do Presidente e a influente organização de veteranos convocou manifestações pela destituição para este sábado.