Cultos apocalípticos que terminam com violência e morte. Leituras enviesadas da Bíblia, discursos sobre lutas raciais e guerras supremacistas, mensagens encriptadas no “White Album” dos Beatles, ranchos perdidos no meio do nada como se fosse um éden para os escolhidos. Charles Manson construiu um culto à sua volta, um homem de 32 anos que passara mais de metade da sua vida em prisões e reformatórios, transformou-se no pastor de um rebanho de ovelhas tresmalhadas a quem conseguira seduzir com um discurso desconexo sobre o fim do mundo, com a ascensão dos negros numa guerra racial.
A história terminou como normalmente terminam estas histórias, em tragédia sangrenta. Aqui, ao contrário da seita de Jim Jones, os seguidores (a “família Mason”) não se mataram num suicídio coletivo, mas foram assassinando aleatoriamente até serem apanhados julgados e condenados (nove pessoas morreram, incluindo a atriz Sharon Tate, mulher do realizador Roman Polanski, grávida de oito meses). Mason foi condenado à morte, mas como a Califórnia aboliu a pena de morte em 1972, Charles Milles Maddox, de seu verdadeiro nome, só morreu este domingo, aos 83 anos. Racista como sempre, com a sua cruz suástica mal tatuada na testa (começou por seu um xis).
Cantor e compositor – pensava que poderia ter uma hipótese de carreira com ajuda de Dennis Wilson, baterista fundador dos Beach Boys –, Manson construiu toda uma teoria do confronto racial entre brancos e negros a partir do “Helter Skelter” dos Beatles, que ele acreditava sintetizar a mensagem que transmitira anos sem fim: a de que haveria uma última batalha apocalíptica entre brancos e negros e estes venceriam aniquilando todos os brancos.
“Helter Skelter”, a canção que McCartney criou para ser mais crua e enérgica ainda que a ruidosa “I Can See For Miles” dos The Who, tem o nome de um tobogã muito popular no Reino Unido. Manson interpretou a letra à sua maneira, dando-lhe o sentido mais apropriado à sua teoria: Nos meses antes das mortes em casa de Sharon Tate (a atriz e mais quatro pessoas foram assassinadas) e de Leno e Rosemary La Bianca, em 1969, instruiu a família sobre o que apocalipse que se adivinhava por trás daqueles versos aparentemente inócuos: “When you get to the bottom/ You go back to the top of the slide”.
O culto da família Manson levou ao assassínio de nove pessoas ao todo (antes dos casos Tate/LaBianca, já tinha sido assassinado Bernard Crowe (um traficante de droga que Manson enganou e depois matou a tiro em resposta às ameaças deste); o duplo de cinema Donald Shea seria morto poucos dias depois, mas o seu corpo só seria encontrado em 1977. Shea trabalhava no rancho como capataz e Manson acusou-o de ter informado a polícia.
As mortes aleatórias e sangrentas visavam, na perspetiva de Manson, causar a inevitável guerra racial. A ideia era levar a polícia a pensar que por trás de tudo estavam assassinos negros, com vontade de matar brancos abastados. Sharon Tate terá sido escolhida porque era loura, bonita, bem sucedida, o seu nome era conhecido, estava grávida e podia causar furor. O confronto entre brancos e negros, numa sociedade onde a luta pelos direitos civis, a emergência dos Black Panther, a guerra do Vietname, politizara e radicalizara, parecia ao líder da família como inevitável, bastava uma fagulha para a ignição.
No entanto, por mais sedutor que fosse a sua personalidade para conseguir atrair o seu pequeno grupo de seguidores e levá-los a executar os crimes mais horrendos, Manson não tinha capacidade doutrinária para transformar o seu discurso sobre o fim do mundo numa verdadeira afirmação política e converter essa dezena de ovelhas tresmalhadas numa brigada executora profissional, com capacidade para matar sem deixar rasto. E ao invés do apocalipse racial que o seu líder previra e ouvira nas incessantes escutas atentas do “White Album”, acabaram todos na prisão, onde ainda quase todos estão, até hoje. Numa rara entrevista dada na prisão, disse ao canal ABC: “Nunca disse a ninguém nada que elas próprias não quisessem fazer”.