O pedido de «amnistia aos delitos do coração» pode ser um pedido poético, através do qual se pede perdão pelos pequenos «delitos», pelas ações erradas que são feitas por amor. Como diz Santo Agostinho: «Se, por amor, tiveres de calar, cala; se tiveres de falar, fala». Ou seja, o que se faz por amor, e com boa intenção, não pode ser visto como negativo, pelo que deverá ser compreendido e perdoado, logo amnistiado.
Porém, há delitos do coração que são mais graves e, como já referido anteriormente, não podem ser amnistiados, por entrarem na esfera do crime. No entanto, julgo que não é a este tipo de «delitos» que se refere o grafito em causa, até porque a violência nunca é um delito do coração, porque quem ama não mata, não fere, não magoa; quem ama coloca a pessoa amada acima de sentimentos de posse e pertença, acima de sentimentos individualistas que procuram transformar a pessoa amada real na pessoa amada ideal. Como muito bem resume Eduardo Sá: «O amor não é o encontro com uma alma gémea, porque quando procuramos uma alma gémea estamos à procura de um reflexo nosso, nunca do amor. Acontece com muita gente: tentam encontrar alguém que idealizaram de todas as formas ao seu alcance sem que esse outro possa, seguramente, trazer diferença e crescimento ao seu mundo. (…) A maldade é o que nos permite distinguir uma relação amorosa de outra coisa a que, de forma delirante e doentia, chamamos amor.»
Ora, com base nestes pressupostos, só podemos ver beleza na expressão grafitada. Erros, pequenos ou grandes, que são cometidos em nome de um amor maior, devem ser perdoados, sobretudo se considerarmos, como afirma Afonso Cruz, citando Luís Maria Pescetti, que «a perfeição só é correta na primeira pessoa: «Eu sou perfeito / tu és ferpeito / ele é prfesito / nós somos trefeitos / vós sois ferfe’itos / eles são prefeitos».»
Talvez quem tenha escrito na parede tenha querido pedir perdão por algo que tenha feito e de que quisesse redimir-se. Transforma, assim, o seu acontecimento pessoal numa situação genérica, apelando à amnistia dos atos que são feitos por amor. E, muitas vezes, estes atos, estes «delitos», nem sequer são muito relevantes ou significativos, mas, para quem os vive, assumem proporções maiores porque quem os sente também os vive com grande intensidade. É natural que tal aconteça. Só quando algo nos toca, nos afeta e faz sentido para nós, é que lhe damos maior importância. É, sobretudo, aquilo que entra em nós pelos sentimentos, pelo coração (e não pela cabeça) que nos percorre por dentro e nos agita. E, quem nos dera que, realmente, o amor estivesse no coração, como deseja António Gedeão: «Eu queria que o Amor estivesse realmente no coração, / e também a Bondade, / e a Sinceridade, / e tudo, e tudo o mais, tudo estivesse realmente no coração».
Algo que é feito pela pessoa amada pode ser sentido como um ataque pessoal, como uma ofensa contra nós, como uma ferida que dói profundamente e teima em não sarar. É nesses momentos que, como diz o poeta Philippe Jacottet: «As lágrimas por vezes elevam-se aos olhos / Como uma fonte». Por estarmos tão envolvidos na relação, sentimos tudo de forma mais intensa. E, muitas vezes, aquilo que o outro faz não tem a intenção de nos magoar e, muito menos, de nos atingir pessoalmente. Daí que peça perdão pelo que fez por amor, e sinta que, como numa história de «Era uma vez», possam ser felizes para sempre, até porque, nas poéticas palavras de Afonso Cruz, no seu romance Nem Todas as Baleias Voam: «A vida é a retenção da respiração da alma»…
Nos contos, como na poesia, tudo é possível. E a poesia está por aí, na rua…
Maria Eugénia Leitão, Escrito em parceria com o blogue da Letrário, Translation Services