Numa altura em que a criminalidade é cada vez mais transnacional e complexa e em que cada vez mais os países apostam em soluções que agilizam a cooperação internacional, Portugal e outros países da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP) continuam a não aplicar de forma generalizada e regular a convenção que assinaram, em 2005, de auxílio judiciário em matéria penal. Esta é, pelo menos, a sensação do advogado Rui Patrício, que avança com algumas razões para que os países lusófonos não usem mais vezes esta convenção, lembrando que “não basta haver convenções”: “É preciso haver uma relação de confiança e de respeito entre Estados.”
Escreveu há pouco tempo um artigo sobre a convenção de auxílio judiciário em matéria penal entre os Estados da CPLP em que defende que a mesma não está a ser aproveitada como deveria. Antes do mais, o que traz de importante essa convenção?
No âmbito da CPLP há, fundamentalmente, duas áreas de cooperação e cada uma delas está coberta por uma convenção. Ambas as convenções são de 2005. Uma é sobre a matéria da extradição; portanto, regula o processo de extradição de um país da CPLP para outro. E a outra, a convenção de auxílio judiciário em material penal, cobre coisas tão diversas como troca de documentos, notificações, audição de pessoas e outro tipo de atos que corram num país e para os quais seja necessária a cooperação de um outro, seja porque as pessoas estão lá, seja porque é preciso realizar um ato lá.
Porque diz que alguns países não estão a utilizar a convenção como deveriam?
É a sensação que tenho – posso estar errado – através de um trabalho prático que tenho tido e até de casos em que não intervenho, mas de que tenho conhecimento. Muitas vezes fico com a sensação de que esta convenção de auxílio em matéria penal ou não é muito conhecida ou, se é conhecida, muitas vezes não é utilizada. E isso não é proibido nem é necessariamente mau, recorre-se às leis nacionais de cooperação. Mas, havendo convenções, elas têm um determinado valor na nossa ordem jurídica, que decorre da própria Constituição, e representam não a vontade de um Estado, mas um acordo entre vários. Ou seja, devem ser preferenciais no tratamento destas matérias. Muitas vezes tenho ficado com a sensação ou, pelo menos, com a dúvida se essa convenção é suficientemente conhecida e, se o for, se há suficiente vontade de a aplicar. Se a minha sensação estiver certa, ou seja, se houver algum desconhecimento ou, havendo conhecimento, faltar vontade de a aplicar, só posso especular sobre as razões.
E quais acha que são então?
Não tenho nenhuma prova de ser a razão A, B ou C. Se não for desconhecimento, há de haver razões para não a aplicar. Não terá havido ainda tempo desde 2005 – estamos a falar de 12 anos – para enraizar na ordem jurídica, seja na portuguesa, seja na dos outros países da CPLP, conhecimento destas convenções? Será desconfiança em relação a algumas soluções destas convenções? Talvez haja mas, se houver, é estranho, porque estas convenções foram subscritas pelos Estados- -membros e representam a vontade desses Estados-membros. Será um problema de desconfiança dos órgãos judiciários dos vários países, e não das convenções em si? Talvez seja. É um problema de confiança entre os países em si? Não sei. Mas a convenção do auxílio permitiria nalguns casos ultrapassar problemas em processos, como a obtenção de documentos, diligências de provas, notificação de pessoas, etc.
O que me diz é que, para que uma convenção como esta seja aplicada, não basta apenas estar escrita no papel.
Para que qualquer cooperação judiciária funcione não basta haver convenções, ou não basta haver instrumentos normativos diferentes de convenções, é preciso haver uma relação de confiança e de respeito entre Estados.
E acha que não existe?
Não sei se não existe, não tenho suficiente conhecimento para dizer que não existe. O que afirmo é que acho estranho que, tendo convenções que já datam de 2005, elas sejam tão pouco aplicadas, nomeadamente esta.
Tem acompanhado diversos casos mediáticos. Admite que as dificuldades na aplicação deste tipo de auxílio seja superior nos megaprocessos, ou nos mais mediatizados, em que os visados são mais influentes?
O que me pergunta é se há especiais dificuldades ou especial aplicação das convenções da CPLP consoante os casos sejam mais ou menos mediáticos? A minha resposta é: no caso específico das convenções da CPLP, não tenho ideia de que haja um tratamento diferente de não aplicação das convenções consoante os casos sejam mais ou menos mediáticos. O que ainda reforça mais a minha estranheza face à não aplicação das convenções ou, pelo menos, a uma aplicação não tão frequente e rica como seria de esperar. Noutros casos, saindo da matéria das convenções da CPLP, há diferenças entre casos mediáticos e não mediáticos. Mas, neste caso, não tenho sentido muito essa diferença, acho que é mesmo um problema com a convenção em si. Se calhar, em 2005, na Cidade da Praia, os países da CPLP subscreveram-na e agora não gostam do que subscreveram – estou a brincar, mas é uma ironia que se pode fazer.
Mas pode concretizar um pouco mais?
É que, se subscreveram e essas convenções representam a vontade dos Estados, porque é que esta convenção tem tão pouca aplicação? Ou então houve uma verdadeira vontade de subscrição dessas convenções, mas ainda não há ou relações próximas ou de confiança ou suficientemente cooperantes entre os órgãos judiciários dos vários Estados para poder pôr a convenção em prática e, por isso, continua a privilegiar-se as soluções tradicionais das legislações nacionais.
Houve nos últimos anos um reforço da cooperação entre estados da CPLP, nomeadamente entre Portugal e o Brasil. As diferentes relações entre os países não pode levar a que a convenção tenha mais peso nuns casos do que noutros?
Tem razão e não tem. Tem razão porque entre Portugal e o Brasil tem existido bastante cooperação, mas não tem porque, na maior parte dos casos, essa cooperação não tem sido ao abrigo das convenções da CPLP. Tem sido ao abrigo ou de instrumentos bilaterais que vinculam os dois países, que é uma realidade com que também temos de contar, mesmo dentro dos países da CPLP, ou dos instrumentos convencionais das legislações nacionais.
Mas há relações e relações no que toca à cooperação internacional, quer seja ao abrigo de convenções ou tratados, certo?
O que lhe digo é que, evidentemente, entre Portugal e os diferentes países da CPLP há velocidades de cooperação diferentes. Tem que ver com muitas coisas de natureza política, de natureza histórica e até da natureza de cada uma das jurisdições. Nalguns casos há uma cooperação mais intensa, noutros menos. Nuns casos também há mais pedidos, noutros há menos. O que não vejo, admitindo que vejo bem, é uma aplicação suficientemente frequente e profunda desta convenção de auxílio mútuo em matéria penal que vincula todos os países da CPLP e que, repito, já tem 12 anos. E acho isso estranho quando ela tem algumas soluções mais ágeis e inovadoras face ao que é a mecânica tradicional da cooperação: as cartas rogatórias. Há soluções que, sem prescindirem do formalismo necessário, permitem uma maior agilidade e criatividade nas soluções.
Referiu recentemente que, além de Portugal, há pelo menos outros dois Estados da CPLP que também parecem desconhecer as convenções. Quais são?
Não lhe vou dizer por uma razão muito simples: se lhe dissesse quais eram os outros dois, poderia acontecer as pessoas associarem a minha sensação relativamente a esses dois países com processos em que intervenho como advogado. E como não quero falar de processos nem direta nem indiretamente, não lhe vou dizer quais são.
Por que motivo são preferíveis as convenções aos tratados?
Os tratados bilaterais são o instrumento clássico entre dois países e é mais fácil dois países entenderem-se do que vários. Mas as convenções têm a vantagem de uniformizar soluções. E criam uma cultura mais uniforme num determinado espaço, com um ponto adicional: é que a CPLP – que se realiza e se multiplica em diferentes tipos de laços -, ao aprofundar estes laços, está a aprofundar a própria ideia da comunidade.
E a necessidade de cooperação entre estes Estados não é algo esporádico…
Hoje em dia, a cooperação judiciária em matéria penal não é uma coisa que acontece de vez em quando. Há 20 anos havia muito poucos processos transfronteiriços ou multijurisdicionais. Hoje é o pão nosso de cada dia e é assim na América, na América do Sul, em Portugal, no Oriente e em muitas partes do mundo. A cooperação é cada vez mais importante e daí resulta que também pode ser um instrumento de aprofundamento entre países e espaços geográficos. Às vezes, falamos muito em globalização, mas não pensamos nas consequências que isso tem em todos os aspetos da vida, entre os quais estes. E só há verdadeira cooperação se houver, para além de tratados e convenções, confiança e respeito – se faltarem os dois últimos, a cooperação não funciona.
O que poderia ser feito para ultrapassar os problemas que existem e aumentar o respeito e a confiança?
Pode aproveitar-se os encontros anuais que já existem para se discutir a convenção. Discuti-la, como se discutem outros aspetos jurídicos. Para conhecê-la, enfrentar as dúvidas que ela suscita. Porque, se calhar, há países que a interpretam de uma determinada maneira e outros doutra, e ainda não a debateram. Podem até ter receio de desencadear essa medida, não sei. Vou dar-lhe um exemplo: na União Europeia, de vez em quando discute-se o mandado de detenção europeu. E ele vai funcionando e vai-se aprofundando, porque estas coisas precisam de tempo. Uma sugestão que eu faria – passe o atrevimento de estar a fazer sugestões – era aproveitar esses fóruns para discutir a convenção. Sobretudo a do auxílio, porque a da extradição não traz tantas dúvidas.
A entrada de um país com as características da Guiné Equatorial na CPLP não pode vir a pôr em causa este tipo de convenções? Ou seja, não pode trazer desconfiança às instituições que têm competência para pôr em prática estes instrumentos?
Há algumas respostas que não posso dar. Não quero entrar pelo campo da diplomacia nem pelo da política, não quero meter a foice em searas alheias; podia dar-lhe a minha opinião enquanto cidadão, mas prefiro não lha dar. Do ponto de vista estritamente jurídico, acho que a entrada da Guiné Equatorial não teve influência praticamente nenhuma na situação atual, porque mesmo antes disso nunca vi esta convenção ser muito conhecida, discutida ou aplicada. Acho que não fez grande diferença. Pode dizer–se o que se quiser, mas eu não vi qualquer diferença entre o antes e o depois.
Mas acha que, no futuro, a presença da Guiné Equatorial pode causar alguns problemas?
Pode haver alguns problemas relativamente a esse membro, não em relação à convenção que vincula vários países. Esta convenção tem de ser enquadrada nas arquiteturas constitucionais dos vários Estados, em princípios do direito internacional, e tem de estar enquadrada nas legislações de cada Estado. E esta convenção não é a única instância normativa nestes aspetos, ela concorre com outras instâncias, internacionais ou nacionais, sejam constitucionais ou infraconstitucionais. Acho que haver um país com uma característica assim ou assado não é o que justifica uma convenção não ser conhecida ou aplicada. Temos exemplos de convenções que vinculam um número de países muito maior que os que fazem parte da CPLP, convenções que vinculam mais de uma centena de países, por exemplo as das Nações Unidas. E mesmo essas, com mais ou menos exceções, com mais ou menos geografias variáveis, com mais ou menos velocidades, acabam por fazer o seu caminho.
As comunicações são feitas através das autoridades centrais de cada país e temos assistido a processos que envolvem as pessoas que estão à frente dessas autoridades ou que têm grande influência – recordo-me do caso que envolveu o procurador-geral da República de Angola. Acha que isso também tem travado esse caminho?
Sem entrar em casos concretos, o que me pergunta é se fricções entre países por causa de determinadas personalidades podem ter um papel de entravar o desenvolvimento de relações de cooperação? A resposta é sim – qualquer pessoa dirá que sim, é da natureza humana. Mas se me perguntar se isso teve um grande peso na falta de conhecimento e de aplicação da convenção, diria que não. Até porque ela também não é usada entre países que não tiveram qualquer fricção. As dificuldades que essas situações poderão causar são conjunturais e o grande problema desta convenção é estrutural.
E o facto de haver países a usar instrumentos muito diferentes, como o caso da delação premiada no Brasil, pode traduzir-se numa incompatibilidade que prejudique a cooperação?
Para esta convenção especificamente, a de auxílio em matéria penal, não. Não tem importância porque o tipo de cooperação que ela trata não tem nada que ver com isso. Os Estados podem ter soluções completamente diferentes e ela funcionar, porque está pensada para a obtenção de documentos, diligências de prova, etc. Onde isso pode causar efeitos é na extradição, aí sim, porque a extradição tem um conjunto de regras que mandam atender a princípios essenciais do Estado ao qual é requerida a extradição. Portugal não extradita, em regra, para países onde há pena de morte, também não extradita para países que não sigam os princípios de um processo leal e equitativo. Agora, dentro disso podemos discutir se a delação premiada é típica de um processo leal e equitativo. Quanto ao que me perguntou, se soluções diferentes em matéria processual podem ter influência na aplicação de convenções, a resposta é sim, mas se implicarem com os pressupostos dessa mesma cooperação.
Disse ainda há pouco que cada vez mais os processos são transnacionais, mas há também uma realidade que é haver cada vez mais processos com o mesmos arguidos. Quando, no âmbito de um inquérito, se chama uma pessoa que está num outro Estado ao abrigo da convenção, dando-lhe as garantias previstas, como se pode garantir que não terá de responder sem tais garantias noutros inquéritos?
Aí é uma luta entre dois princípios, o da eficácia/eficiência e o da lealdade. A convenção tem um artigo para isso, o artigo 14.o. Do ponto de vista da eficácia/eficiência, percebe-se que se aproveite uma deslocação para mais do que uma diligência, desde que – e aí entra o outro valor – isso seja colocado em cima da mesa com lealdade. E a lealdade é de duplo sentido: em relação ao Estado ao qual o país pediu cooperação e em relação ao visado. As pessoas não podem ser levadas ao engano, seja qual for a qualidade (mas, sobretudo se forem visadas na qualidade de suspeitas ou arguidas, esses princípios de lealdade endurecem, são muito mais fortes).
Sei que não pode falar de processos concretos, mas há pouco tempo foi conhecido o caso de Hélder Bataglia, no âmbito da Operação Marquês. Se uma pessoa vier para um inquérito com a salvaguarda de que não pode ficar retida ou privada de liberdade, no âmbito de outros inquéritos que corram no país requerente, poderá ser retida ou privada de liberdade? A convenção prevê estas situações?
Sim, é o tal artigo 14.o. Sem entrar no caso concreto, a convenção tem uma solução expressa para isso, para permitir o equilíbrio entre a tal ideia de eficácia/eficiência e a de lealdade. O que diz é que, se uma pessoa vem para um determinado processo, não pode ver restringida a sua liberdade ou os seus direitos por força de outro processo. Se não havia cooperação, para haver cooperação tem de haver respeito e confiança. E as soluções têm de ser exequíveis, não podem ser quiméricas. Portanto a convenção de auxílio prevê um equilíbrio entre as duas coisas.
Onde é que a convenção é usada mais vezes e onde tem sido aplicada com sucesso?
Casos concretos não lhe posso dar mas, em abstrato, a cooperação em matéria de auxílio já foi usada várias vezes em matéria de obtenção de documentos, mas, para inquirição de pessoas, menos vezes. Conheço poucos casos de aplicação desta convenção. Conheço muitos casos de cooperação internacional, mas poucos ao abrigo da convenção da CPLP. Posso dizer-lhe que não conheço nenhum caso com a aplicação do artigo 14.o.
Então, quando se trata de inquirição de testemunhas, preferem-se sempre outros meios.
Sim, existem no total quatro hipóteses: fazer-se uma equipa conjunta com autoridades do outro país e ir-se lá ouvi-la; expedir-se a tradicional carta rogatória com questões (escritas) para as autoridades do outro país e esperar-se que a mesma seja devolvida com as respostas; desencadear-se mecanismos de videoconferência entre tribunais (o que já é possível); e a quarta hipótese é notificar a pessoa para se deslocar ao país com o objetivo de ser ouvida, dando-lhe um conjunto de garantias. Esta última, eu nunca vi ser aplicada em Portugal. Porquê, não sei.