Jamaiquização da Europa

É hoje referida com frequência a existência de uma crise de liderança na Europa. Uma exceção a essa realidade tem sido, ao longo dos últimos anos, a Chanceler Alemã, Angela Merkel.

A sua liderança tem sido decisiva e, como tal, também controversa. Desde logo pela forma como conduziu a posição da Alemanha, e também da zona Euro, ao longo do período da crise das dívidas soberanas. Criticada por muitos, objeto de comparações abjetas ao regime Nazi – como as que foram feitas durante uma sua visita à Grécia no auge da crise – dirigiu com firmeza uma política de contenção orçamental, ao mesmo tempo que disponibilizava apoios aos países em dificuldades. Exemplo disso é a celebração simultânea do Pacto Orçamental – que impunha obrigações relevantes aos Estados, incluindo de cumprimento do chamado défice estrutural – e a criação do Mecanismo Europeu de Estabilidade, que previa um mecanismo permanente de apoio financeiro aos Estados em dificuldades, mediante o cumprimento de um conjunto de obrigações.

A verdade é que a liderança de Merkel – e de Barroso, na Comissão Europeia – permitiram enfrentar a crise financeira com custos enormes, é certo, mas preservando a existência do Euro a qual, em certo momento, recorde-se, esteve seriamente comprometida. Portugal vive hoje um bom momento económico, tendo passado por essa crise de 2010 a 2015, o que mostra a resiliência da estrutura social e económica portuguesa, mas também que ela não foi comprometida pela estratégia adotada.

O capital político interno acumulado por Merkel ao longo dos anos da crise permitiu-lhe a atitude muito corajosa – e louvável – que tomou perante a crise de refugiados, em 2015. A Chanceler declarou que a Alemanha estaria disponível para receber um milhão de pessoas, o que veio a acontecer, uma vez que a Alemanha assumiu a larga maioria do esforço de acolhimento dos refugiados que entraram na União Europeia.

Não obstante o referido capital político, a popularidade de Merkel sofreu muito com esta declaração – a qual se torna ainda mais notável por isso – demonstrando assim um enorme humanismo, sobrepondo-se ao cálculo político imediato.

Ainda assim, venceu as eleições de 2017, encontrando-se agora na difícil situação de ter de formar Governo.

Nas últimas semanas tentou uma improvável coligação entre a sua CDU, os Verdes e a FDP, a que se chamou coligação ‘Jamaica’, tendo em conta as cores dos partidos em causa.

Esta tentativa de coligação falhou no início desta semana, em grande parte por desentendimentos entre os partidos em matéria de política de imigração e de acolhimento de refugiados. Uma das propostas é a de impor um teto à receção de refugiados pela Alemanha, o que poderia constituir uma violação da Convenção de 1951 para a proteção dos refugiados e dos mecanismos europeus de Dublin após a sua revisão.

Em todo o caso, as dificuldades de formação de uma coligação na Alemanha, após a recusa do SPD em prosseguir a grande coligação, podem agravar a dita crise de liderança na União Europeia. Merkel não tem hoje a força que tinha no início do seu mandato, e esse menor capital político interno tem depois, naturalmente, um reflexo internacional.

Não apenas no âmbito da União Europeia, mas em termos mais abrangentes. No primeiro contacto com Trump, por exemplo, Merkel recordou-lhe as obrigações dos Estados Unidos da América em matéria de Direito Internacional e, em especial, quanto à proteção dos refugiados. Hoje a sua força para impor uma tal visão não seria a mesma.

Corremos por isso o risco de as dificuldades de formação de Governo na Alemanha virem a representar não apenas o colapso da ‘Jamaica’, mas uma ‘jamaiquização’ das lideranças europeias, corroendo a que se apresentava como mais estável. E isso não é positivo para o projeto Europeu, num dos momentos de maior fragilidade.