A Colónia Anarquista de Macedonio Fernández

De Borges a Vargas Llosa, passando por Cortázar, Piglia ou Bolaño, a influência de Macedonio Fernández na literatura hispano-americana permanece incontestável. Até hoje, mantém-se inédito em Portugal

Uma noite de sábado como qualquer outra. Encostado a uma cadeira de madeira, narra as desventuras da sua vida de eremita a um público que o ouve com atenção, um público composto por jovens formados, vindos das famílias aristocráticas da cidade. Ele fala-lhes de filosofia, de metafísica, de religião, da estranheza de existir, mas prescinde de qualquer postura pontifícia e aborda os temas num tom socrático de indagação. Eles apontam as frases do mestre em cadernos, folhas, guardanapos, na própria toalha de mesa. São os anos vinte no café La Perla del Once, em Buenos Aires. Os jovens extasiados que o rodeiam são a futura vanguarda literária portenha: Leopoldo Marechal, Raúl Scalabrini Órtiz, Silvina Ocampo, Olivério Girondo, Norah Borges, Jorge Luis Borges.

Macedonio Fernández (1874-1952) fora resgatado do olvido por uma geração de literatos desesperada por um padrinho. Naquele tempo o seu reconhecimento enquanto referência cultural era pouco. Publicara apenas em pequenas revistas e abstivera-se de pertencer a qualquer movimento artístico ou literário. As suas ideias (e o modo como as postulava) costumavam ser abstratas e por vezes delirantes. Viveu durante anos no interior do país, onde desempenhou funções como fiscal e onde dizem, em tom anedótico, que terá perdido o cargo por nunca ter condenado alguém. Isso sim, foi desde cedo um escritor frenético. Escreveu poemas e ensaios que durante anos permaneceram guardados. Explorava as ideias de Hume e Schopenhauer e expunha conclusões próprias sobre a relação do Homem com o real. O seu interesse pela percepção e emoção levaram-no a trocar correspondência com o filósofo e psicólogo William James, irmão do escritor Henry James, iniciando uma amizade epistolar que se iria manter até à morte de James, em 1910.

A vida de Macedonio Fernández sofreu um drástico revés após o falecimento da mulher, Elena de Obieta. Abandonou a profissão de advogado, deixou os seus quatro filhos sob a tutela de familiares e isolou-se numa pensão do bairro Once, onde levou durante anos uma vida austera e solitária, no limiar do abandono pessoal. No quarto da sua pensão escreveu incansavelmente, apesar de não dar qualquer tipo de valor aos seus textos. É nesse estado de deplorável descuido que o jovem Jorge Luis Borges o encontra, após regressar de Genebra, em 1921, e o convida a participar nos saraus literários do café La Perla del Once, junto ao Grupo de Florida, que mais tarde viria criar a revista “Martin Fierro”. Se Leopoldo Lugones era considerado até aquele momento o inaugurador do modernismo na Argentina, é Macedonio Fernández que essa geração de escritores, uma geração de vanguardistas, elitistas, cínicos e enamorados da nova vida cosmopolita bonaerense, irá tomar como mestre.

A Macedonio interessava-lhe a metafísica da consciência e desinteressava-lhe publicar. Desinteressavam-lhe os movimentos literários e a corrida por um cânone. “Morrer de olhos abertos” era o seu único objectivo. A geração de Borges via-o como uma figura mítica, e a sua participação nos saraus era tida como uma visita do oráculo, uma oportunidade de vislumbrar a sua desenvoltura e capacidade de raciocínio. Para o Grupo de Florida o autêntico Macedonio não estava na escrita; nos seus textos, poemas, contos, ensaios. Tudo isso era inferior à própria figura do autor.

Foi num desses encontros literários que Macedonio Fernández relatou um antigo plano engendrado com o seu íntimo amigo Jorge Guillermo Borges e um grupo de intelectuais da Universidade de Buenos Aires. Por volta de 1897, movidos pelos textos do Conde de Saint-Simon e as suas ideias proto-socialistas, decidiram abandonar os estudos e partir de barco em direcção ao Paraguai, para estabelecer uma colónia anarquista nos terrenos inexplorados da selva paraguaia. Antes da partida, Jorge Guillermo Borges decidiu ficar em Buenos Aires, onde acabaria por casar e ser pai do Borges mais conhecido, mas o resto do grupo zarpou rio acima e estabeleceu-se na selva virgem. Como seria de esperar, a natureza não tardou em vencê-los e o projeto fracassou, tendo Macedonio regressado a tempo de retomar os estudos e obter o seu título de advogado.

É difícil perceber se foi Macedonio que apadrinhou o Grupo de Florida ou se foi o Grupo de Florida que apadrinhou Macedonio. Após dezoito anos sem publicar, aparece na primeira edição da revista “Proa”, fundada por Jorge Luis Borges, que ainda lhe dedica um poema no seu livro de estreia, “Fervor de Buenos Aires”. Em 1924 é editado na revista “Martin Fierro”. Leopoldo Marechal e Raúl Scalabrini Órtiz procuram editar um longo ensaio metafísico de Macedonio, que revisita a fenomenologia de Kant e o idealismo berkeliano. É um texto de passagens indecifráveis, com uma maquinaria textual própria, onde se mescla a literatura na filosofia e a filosofia na ficção. Finalmente, “No toda es vigilia la de los ojos abiertos” é lançado em 1928. No ano seguinte, é Borges quem batalha por levá-lo ao prelo, e em questão de meses aparece editado “Papeles de Recienvenido”, mas a verdade é que nenhum dos dois livros chega a ter um número razoável de leitores.

Entretanto, a sua obra privada cresce e amontoa-se, carecendo de ordem e método. Cadernos, folhas soltas, epístolas enviadas e por enviar, reais e imaginárias, cartas que escreve, mas não envia, cartas que imagina, mas não escreve. É por esta altura que começa a trabalhar naquilo que é considerado o seu opus magnum, “Museo de la Novela de la Eterna” (1967), que virá a ser publicado anos depois da sua morte. São 56 prólogos que antecedem uma eventual novela, onde Macedonio expõe memórias, reflexões, personagens e vivências na mais absoluta forma experimental.

O impacto de Macedonio Fernández na geração de escritores argentinos de 1920 é explícito e inegável. Géneros literários que se confundem, revisões a obras de autores inexistentes e o escritor que aparece vezes sem conta como personagem, deixando o leitor com uma constante sensação de mise en abyme ou pelo menos de dúvida entre a realidade e a ficção, são típicos traços borgesianos, mas que figuraram muito antes na obra de Macedonio. Inclusivamente, Borges entra no jogo fazendo de Macedonio personagem em alguns dos seus contos. Contudo, o que deve ser considerado é se o mito da figura não fez com que o Grupo de Florida menosprezasse a leitura atenta de Macedonio Fernández. Talvez por um impulso egoísta, ou da sua conhecida e incontrolável capacidade de efabulação, Borges tenha expressado diversas vezes que não estava nos livros o Macedonio que importava, mas sim no seu diálogo e discurso. Enquanto discípulo, inferiorizou a escrita do mestre em detrimento de aquelas reuniões romantizadas no café La Perla del Once.

“Propus-me vários fins” disse Borges em certa ocasião, “corrigir certas fealdades de Miguel de Unamuno, ser um escritor do século XVII, ser Macedonio Fernández”. A colónia anarquista de Macedonio na selva paraguaia fracassou, mas houve uma outra colónia que triunfou, uma colónia que se manteve presente na obra de Borges, e por extensão, na de todos aqueles que ele influenciou. Uma colónia que se foi ampliando através dos discípulos que o ouviam naqueles saraus e que o imitavam, quer no estilo, quer no modo de pensar, e que ainda hoje chega a um número interminável de autores e leitores, geração após geração.