Francisco aterrou ontem num campo diplomático pejado de minas e dificuldades: Rangum, maior cidade de Myanmar, país onde decorrem desde outubro operações de limpeza étnica que provocaram a morte de milhares de muçulmanos da minoria rohingya, o êxodo de mais de 600 mil pessoas para o vizinho Bangladesh, e onde o Papa passará quatro dias de funambulismo humanitário. As dificuldades são tantas e os perigos tão espinhosos que ontem não se sabia sequer se Francisco vai falar ou não publicamente das operações militares das últimas semanas, apesar de já as ter denunciado, assim como dezenas de países e a ONU.
O equilibrismo é difícil, mas tem contornos claros. Francisco, um dos mais importantes defensores dos direitos dos refugiados e minorias étnicas, visita um país onde a própria palavra “rohingya” pode provocar tumultos nas ruas. A maioria budista de Myanmar não reconhece a cidadania dos muçulmanos na região ocidental do país e argumenta que eles são imigrantes vindos do Bangladesh, apesar de muitos historiadores dizerem que eles ocupam o território hoje chamado Rakhine desde o séc. xi. A um ataque rohingya contra militares em outubro, o Exército respondeu com grandes operações de limpeza étnica, sob a justificação de luta antiterrorismo.
A maioria budista – e o exército, acima de tudo – não apenas recusa as matanças como diz até que não há violência étnica na região, uma vez que não reconhece os rohyngia como parte integrante da sociedade. Mencionar os grandes êxodos das últimas semanas e os relatos que correm na imprensa internacional apresenta dois riscos para Francisco. O Papa pode, em primeiro lugar, pôr em risco a minoria cristã em Myanmar, que ronda as 700 mil pessoas; em segundo lugar, pode arriscar a lenta transição do país para a democracia, iniciada há dois anos, quando os militares que governavam a sós há cinco décadas permitiram que os assuntos não relacionados com a defesa fossem para a mão do partido da Nobel da Paz Aung San Suu Kyi, também muito criticada por nada fazer para impedir a violência.
Será quase impossível a Francisco manter a sua reputação intacta e ajudar publicamente os rohingya. Pode piorar a violência, atrasar a transição democrática ou colocar em risco os cristãos. “Arrisca-se a comprometer a sua autoridade moral ou a pôr em risco os cristãos daquele país”, explicava ontem o reverendo americano Thomas Reese ao “New York Times”. “Admiro-o e as suas aptidões, mas alguém devia tê-lo convencido a não fazer esta viagem.”
O Papa encontrou-se ontem com o líder do Exército, Aung Hlaing, o mesmo homem que responde pelas acusações de que, nas últimas semanas, os seus militares abateram indiscriminadamente centenas de pessoas e queimaram aldeias inteiras, assim como muitos dos seus habitantes – vivos. Segundo uma nota publicada ontem no Facebook, o general disse a Francisco que “não há discriminação religiosa” em Myanmar ou entre os seus “grupos étnicos”.
O encontro durou apenas 15 minutos e deu-se na habitação do arcebispo de Rangum, onde Francisco se encontra a pernoitar. A reunião, que não estava planeada, demonstra o jogo de cintura a que Francisco está obrigado: o Papa deu prioridade ao chefe do Exército e viu-o antes de San Suu Kyi, com quem vai reunir-se hoje. “É inteligente encontrar-se primeiro com o comandante das Forças Armadas porque ele é muito importante e é a figura mais central para resolver o desafio que o nosso país enfrenta”, explicava ontem ao “New York Times” o analista político Yan Myo Thein.