“O estabelecimento de laços entre a China e o Panamá é um decisão política tomada por ambos os lados com base em princípios políticos e com um olhar a longo prazo”. Poderia ser uma simples declaração diplomático-protocolar depois de um encontro entre os dois chefes de Estado, mas a verdade é que esconde um complexo jogo de xadrez diplomático na política internacional.
No passado dia 17 de novembro o presidente panamiano Juan Carlos Varela anunciou o estreitar de laços com a República Popular da China, liderada pelo presidente Xi Jinping, depois de, em junho, ter cortado relações com Taiwan para estabelecer relações diplomáticas com Pequim. “O governo da República do Panamá rompe hoje [segunda-feira] as suas ‘relações diplomáticas’ com Taiwan”, comunicou Varela por comunicado. As razões não são de agora: a China “sempre teve um papel preponderante na economia do Panamá”, sendo “atualmente o segundo mais importante utilizador do Canal do Panamá e o principal fornecedor de mercadorias na Zona Livre de Cólon”.
Durante o encontro entre os chefes de Estado, China e Panamá assinaram não menos que 19 acordos comerciais, para reforçar os laços económicos, incluindo um estudo da viabilidade para um acordo de comércio livre. “Se os nossos amigos pamanianos precisarem, no espírito de amizade e cooperação Sul-Sul, o lado chinês está disponível para ajudar no desenvolvimento económico e social do Panamá com o máximo das nossas capacidades”, afirmou Zhao Bentang, membro da comitiva e chefe do departamento da América Latina do Ministério dos Negócios Estrangeiros chinês.
Ainda no mês passado, um grupo económico chinês, o China Harbour Engineering Company Ltd, começou a construir um porto no Panamá para cruzeiros com um valor na ordem dos 165 milhões de dólares (138 milhões de euros), o primeiro projeto a ser anunciado desde o estabelecimento de relações diplomáticas.
Desde o fim da Guerra Civil Chinesa (1946-1949), com a derrota dos nacionalistas, que fugiram para Taiwan, que Pequim e Taipei se degladiam pela obtenção do reconhecimento diplomático, mas o confronto escalou com as crescentes suspeitas de que o presidente taiwanês, Tsai Ing-wen, poderá avançar para uma declaração de independência formal da ilha. Para Pequim, Taiwan não tem o direito de existir por ser um território chinês – argumento defendido na política de Uma China, obrigando todos os países que queiram estabelecer relações com a China a respeitá-lo.
Entre os 193 Estados-membros das Nações Unidas, apenas 20 reconhecem – agora 19 – diplomaticamente Taiwan, dos quais 11 se localizam na América Latina e Caraíbas. Entre estes, o Panamá é a maior economia per capita, resultando num forte golpe para Taiwan. A nação panamiana poderá não ficar sozinha nesta jogada diplomática, seguindo-se a Nicarágua, que já no passado rompeu laços com Taiwan e que precisa de novo capital para prosseguir com a construção do novo canal interoceânico, no passado apoiado por capital chinês na ordem dos 50 mil milhões de dólares (41 mil milhões de euros).
Se a política de Uma China é essencial na política externa de Pequim, esta movimentação diplomática é também uma resposta à influência norte-americana na região – principalmente se atentarmos para a importância do Canal do Panamá para os EUA, importância que no passado já levou a intervenções militares.
Ainda o quintal dos Estados Unidos?
Não são raras as referências à América Latina como o quintal de influência geopolítica exclusiva dos EUA, desde que a doutrina Monroe, de 1823, se tornou num dos princípios basilares da política externa norte-americana. Defendendo a independência das nações da América Latina contra a subjugação dos poderes ideológicos e económicos coloniais europeus, a doutrina veio, mais tarde, a servir de justificação para o expansionismo norte-americano, como aconteceu com a anexação do Texas em 1842 e para as consequentes intervenções de potências externas ao continente americano. Se no início teve como objetivo combater o colonialismo europeu, com a Guerra Fria assumiu-se como um pilar fundamental no combate à influência da União Soviética na região, justificando intervenções externas e apoios a ditaduras de direita.
Já lá vão mais de 25 anos desde o tempo em que norte-americanos e soviéticos disputavam a influência na região. Os tempos mudam e com eles as vontades. Hoje, Washington já não se preocupa com o urso soviético, mas sim com o dragão chinês. Apesar da China ser o principal parceiro comercial dos Estados Unidos, pretende contestar a hegemonia norte-americana na política internacional, assumindo-se como a alternativa às intenções norte-americanas. A América Latina é, hoje, uma região integrada nessa estratégia.
Nas administração de George W. Bush filho e Barack Obama, a Casa Branca focou-se em grande medida no Médio Oriente, na Rússia e na Ásia-Pacífico, relevando a América Latina para as regiões menos prioritárias da política externa norte-americana. Apercebendo-se do desinvestimento norte-americano na região, a China procurou criar laços diplomáticos, económicos e militares com a região, tornando-se num importante aliado.
Desde esse momento que procurou satisfazer as suas próprias necessidades industriais de recursos naturais – petróleo, gás natural, cobre, ferro – e de mercados para onde possa exportar os seus bens manufaturados, prosseguindo com investimentos e acordos comerciais com a Venezuela, Equador, Colômbia, Argentina, Brasil e até com o México. Entre 2000 e 2013, as relações comerciais cresceram 2400% e Pequim planeia continuar os seus esforços neste plano. A China também se tem afirmado como um dos principais jogadores na venda internacional de armamento e a América Latina tem sido um dos principais mercados para Pequim. A venda de armamento à Venezuela não é novidade, mas em 2015 a Argentina anunciou o desejo de comprar armamento militar na ordem dos mil milhões de dólares (838 milhões de euros). Pequim também tem criado programas de intercâmbio militares com as forças armadas do Chile, Peru, Uruguai México, Colômbia, equiparando-se aos históricos programas norte-americanos.
A América Latina também viu no dragão chinês um respeitável aliado diplomático e económico. Para além de poder servir como contrapeso à influência norte-americana, as relações económicas com uma potência mundial também contribuem para o prestígio das nações da região, bem como para o aumento das suas exportações de recursos naturais, contribuindo para a balança de pagamentos.
Trump e a América latina
Se as duas anteriores administrações norte-americanas relegaram a América Latina para um papel secundário na política externa, a administração de Donald Trump parece ainda não ter uma política externa definida para a região. Ainda assim, e com base na política “America First”, os discursos de Trump a prometer desfazer o NAFTA e antagonizar o México, um dos aliados tradicionais dos EUA, com a construção de um muro pago por si para evitar a imigração, as relações norte-americanas com a região atingiram um nível ainda mais baixo. “A sua má gestão tem causado danos tremendos – não apenas a minar os interesses económicos e de segurança dos Estados Unidos como também a destruir o rígido legado bipartidário que Washington negociou para o hemisfério sul”, escreveu Christopher Sabatini na “Foreign Affairs”. Ora, a orientação de Trump poderá acentuar os sentimentos anti-americanos na América Latina, dando ainda mais margem de manobra para Pequim penetrar na região em termos políticos, económicos e militares. Por exemplo, na mesma semana em que o presidente Trump ameaçou o governo venezuelano de Nicolás Maduro com uma “opção militar” para intervir no país, o ministro chinês dos Negócios Estrangeiros, Wang Yi, chamou à América Latina de “extensão natural da rota da seda marítima do século XXI” com “novas oportunidades de cooperação”. Relembrando um conhecido ditado popular, poderíamos dizer que quem vai ao ar, perde o lugar.