Estão no palco do Teatro Tivoli BBVA, que comemora hoje o seu 93.o aniversário. Tiram fotografias enquanto admiram a beleza do espaço e comentam o enorme cartaz que anuncia a estreia da peça que os trouxe ao outro lado do oceano. Reynaldo Gianecchini e Ricardo Tozzi estão em Portugal para apresentar a obra de Rajiv Joseph encenada por Rafael Primot. “Os Guardas do Taj” já esteve em digressão por várias cidades portuguesas e estreia-se hoje em Lisboa às 21h30. Descrevem-na como uma peça sobre a vida, a amizade, as diferenças que nos unem enquanto humanos. E sobre o que é ser humano. Mas pouco nos adiantam do que é feito, afinal, este espetáculo. Sentam-se connosco e as vozes e a simpatia são as mesmas a que nos habituaram nas telenovelas brasileiras. A cumplicidade entre os dois atores e amigos é inquestionável. Complementam-se em cada resposta e prometem que no palco não se verá mais do que a própria realidade espelhada em arte. Mantivemos nas respostas o português do Brasil.
Sabemos muito pouco sobre esta peça, talvez pudéssemos começar por falar um pouco sobre o que é que vem aí…
Reynaldo: Acho essa peça engraçada e acho muito bom que as pessoas venham sem conhecer exatamente o que vai ser, porque é sobre muita coisa. Ela nos tocou profundamente quando a gente leu o texto. Fala sobre dois amigos, com uma amizade muito profunda, sobre pessoas muito racionais e outras muito emocionais em que ele é o sonhador, eu sou o racional. Para mim, o maior mote da peça é sobre pessoas que não questionam nada, que seguem a vida reproduzindo as coisas sem pensar, que fazem tudo que lhes mandam. É um tema bastante atual que sempre me faz lembrar os soldadinhos lá na Coreia do Norte que, se lhes mandarem apertar um botão, eles apertam sem pensar. Mas a peça é muito surpreendente, não gostamos nem de falar sobre a estrutura dela porque não é nada óbvia e é baseada em lendas que os indianos contam sobre a construção do Taj Mahal.
Ricardo: Grande parte da história é real, não sabemos quais os episódios em concreto porque são lendas urbanas, lendas vivas. O autor inclusive é um cara de origem indiana. E de alguma forma acho que é uma peça que fala sobre a gente, na medida em que estamos sempre a fazer escolhas na vida, e essas escolhas, às vezes, passam por seguir exatamente o caminho que lhe está proposto sem questionar ou as escolhas que você realmente pode fazer chegando mais para o coração, com todo um lado mais emocional. Então é por isso que quando a gente leu, ficámos tão arrebatados pelo texto, porque qualquer pessoa que sentar e assistir a essa peça vai-se identificar com algum momento da sua vida.
Foram diretamente convidados para fazer a peça?
Reynaldo: Sim, o nosso diretor, o Rafael Primot, é muito amigo da gente, é um cara jovem mas muito atuante no Brasil, desde o teatro ao cinema, à televisão, escreve, dirige, e tínhamos essa vontade de trabalhar com ele há muito tempo. De repente surge esse projeto na hora certa, com as pessoas certas, de quem também somos muito amigos, e até mesmo a Ana, que se juntou em Portugal e com quem eu já tinha trabalhado. É uma história feliz.
Sincronia…
Ricardo: Nem tem ideia, tudo aconteceu sem o menor esforço. Ainda há pouco estávamos comentando isso. Quando a gente leu o texto, no último dia da nossa novela, lemos correndo na minha casa e fomos embora, mas lembro-me de que ficámos arrebatados de tal forma por esse texto que, passadas duas semanas, a peça estava pronta, o projeto, o dinheiro, isso e aquilo, tudo. (Risos)
Reynaldo: Eu até tinha planos de tirar um ano sabático. Só que aí houve todo esse fluxo e tive de abortar esse plano.
Ricardo: A gente arrancou ele dessa ideia. (risos) Hoje em dia, a gente tem já um tempo de carreira, ele mais do que eu, que sou mais novato, mas acho que fazemos muitos trabalhos exatamente como essa peça questiona: sem pensar.
Isto é um pouco assim em todas as profissões, mas o início de carreira de um ator deve ser especialmente complicado, porque quer ganhar experiência, começar a ficar conhecido no meio e, por vezes, acaba por nem se identificar com o projeto, não é?
Ricardo: Nunca entrei num projeto sem uma boa expetativa. É algo que vejo já como uma premissa da vida, mas o que acontece é que os projetos nem sempre correspondem no fim.
Reynaldo: Também nunca entrei num projeto de que não gostasse, mas quando você é jovem quer testar um pouco de tudo, quer provar algo para as pessoas e para você mesmo. Estou a entrar noutra fase agora, vou fazer 45 anos e não quero mais ficar trabalhando que nem um maluco de domingo a domingo. Quero fazer projetos que me digam respeito, que façam sentido, que tenham a ligação com as pessoas.
Na descrição da peça falam muito no conceito de perfeição. A carreira de ambos teve a televisão como alavanca. O teatro é humano, falível, mas na TV repetem-se as cenas vezes sem conta. O mote da televisão é a perfeição?
Ricardo: É, o teatro é vivo, não é? A televisão é mais uma fábrica, porque tem de entregar aquele capítulo pronto naquele dia para ir para o ar e não interessa o que aconteça. O teatro, acho que é a nossa chance de realmente investigar tudo o que aquele personagem pode ser, todas as camadas que me pode dar, e de ter um trabalho assim com mais qualidade.
Reynaldo: A repetição também faz com que se possa experimentar muitas coisas que no dia-a-dia do teatro se vão descobrindo. E é inacreditável porque no fim de uma longa temporada descobrem–se coisas que você não tinha nem noção sobre o personagem. E isso é muito bonito e enriquecedor para o ator, como um processo que não termina nunca.
Ricardo: O teatro só acontece quando abre a cortina, mas não se pode menosprezar. Você está ali vivo, entregue, não sabe o que vai acontecer, nem com você nem com a plateia, e essa energia que é trocada é que forma o espetáculo. Digo sem dúvida que a alma do ator está no palco, sem corte, sem câmara, sem uma luz, sem edição.
Qual tem sido o maior desafio ao fazer esta peça?
Reynaldo: Nossa, são tantos! Tem muitas camadas, mesmo os próprios personagens, e realizar tudo isso no palco traz muitos desafios. Por exemplo, na peça somos guardas, então começa nos mais pequenos desafios físicos até aos desafios em que é preciso dar a complexidade toda que é precisa. São cenas de muito impacto emocional, sobre estados muito alterados da consciência.
Ricardo: Acho que um dos maiores desafios, e sem o qual a peça não existiria, é a conexão dos dois personagens, que é uma coisa que a gente já tirou muito proveito da nossa amizade de longa data, mas estes personagens dependem muito do que os atores conseguem conquistar mesmo em termos de se conectarem, de serem uma dupla. Sabe essas pessoas que você olha e fala que eles se complementam?
Vocês complementam-se na vida real?
Ricardo: Sim, e eu acho que nessa peça, se os atores não tiverem essa ligação de verdade, nesse jogo que tem que ver com ritmo, com a delícia da peça, com o deixar que se note que essa amizade existe de verdade, esse me parece mesmo o maior desafio.
Reynaldo: Eles falam muito a partir desses dois contrapontos, a emoção, a razão, em que o Ricardo é o sonhador e eu sou o racional, então existe essa necessidade muito grande de afinidade entre os atores.
O Reynaldo dizia há pouco que vai fazer 45 anos, o Ricardo tem 42. Sentem que a idade tem trazido maturidade às vossas personagens ao longo da carreira?
Reynaldo: Sem dúvida. Depois de uma certa idade, você já entende muito bem o que não quer. Acho que a vida é uma eterna busca pelo autoconhecimento. “O que é que a gente quer exatamente? Vamos buscar ainda.” Mas o que a gente não quer é cada vez mais claro, você dá uma relaxada, foca muito mais naquilo que são as coisas que já acha mais interessantes. A vida fica muito legal depois dos 40, não sei se vocês falam isso aqui, mas no Brasil a gente fala “a vida começa aos 40”. (risos) Para mim faz todo o sentido.
Ricardo: Para mim também, porque na verdade penso que a nossa premissa é a evolução, e isso requer um acumular de experiências. Quanto mais experiência você tiver na vida, mais estofo dá para entender as coisas. Não trocaria nunca pela juventude a cabeça que a gente vai conquistando com o tempo, e isso se reflete diretamente no nosso trabalho porque o trabalho do ator é entender a outra alma humana, a da personagem. E hoje, como já conhece melhor o ser humano, já consegue olhar para isto de uma forma muito mais elaborada, enquanto o jovem, por norma, segue mais o estereótipo mesmo. E isto é gostoso.
Reynaldo: Como o nosso material de trabalho é o lado humano, claro que quanto mais na vida você cresce, mais você traz essa maturidade para o trabalho.
É inevitável.
O ator é o mestre da empatia?
Reynaldo: Você tem de se colocar literalmente no lugar daquela alma, entender quem é essa personagem e interpretar o lugar dele.
Ricardo: É um exercício muito bom para nos colocarmos no lugar dos outros.
Portugal consome muita ficção brasileira, que prima pelo realismo e pelo trabalho a fundo da caracterização das personagens.
É realmente um trabalho doloroso de uma escola brasileira ou é mais talento e genuinidade?
Reynaldo: Um pouco de tudo. Não penso que seja um país que tenha muito know-how, uma tradição forte, como algumas escolas maravilhosas dos Estados Unidos ou Inglaterra. Mas acho que temos uma grande intuição. Por exemplo, tive a sorte de aprender muito com diretores, na prática, porque nunca estudei muito, não fui à faculdade. E é assim lá, quase ninguém vem de uma grande escola, mas temos muito bons profissionais e muito bons diretores. E agora, com a era digital, está aparecendo uma galera muito jovem, fazendo coisas tão boas. Acredito muito nessa turma nova agora.
Vocês interpretam duas personagens indianas. Já alguma vez estiveram na Índia?
Reynaldo: Não exatamente para essa peça, mas já estive lá duas vezes e adoro aquele país.
Ricardo: Nunca estive lá, mas a Índia veio até mim, de alguma forma, porque fiz aquela telenovela “O Caminho das Índias”. Nessa altura, a Globo proporcionou algo fenomenal, que foi um workshop de dois meses convivendo com indianos, e isso deu para aprender muito sobre aquela cultura muito peculiar. O espetáculo vai levar o público para um outro universo e eu acho que isso é muito bom.
Mas o que podemos esperar da peça? Humor, drama?
Reynaldo: Um pouco de tudo, não é exatamente uma comédia, mas há ali uma relação dos dois. O Ricardo é a personagem leve da peça, eu sou todo certinho, e isso traz momentos muito leves.
Na vida real também são assim?
O Reynaldo é o mais racional e o Ricardo o mais emocional?
Ricardo: (risos) É o oposto.
Trocaram de papéis.
Reynaldo: Sim. A peça tem um lado dramático, com momentos tensos, mas também tem um lado mágico, é quase um conto. Tem uma cena muito bonita, poética – no fundo, um pouco de tudo.
Li algures que os personagens estão a guardar o Taj Mahal enquanto é construído, mas que nunca podem olhar para ele, o que me fez lembrar os seguranças que estão a guardar a plateia e nunca podem olhar para trás durante os jogos de futebol. Alguma vez sentiram essa pressão ao encarnar as personagens, essa ansiedade, a revolta?
Reynaldo: É exatamente isso.
Ricardo: Sim. O que norteia a história deles é que eles estão lá, sei lá, há dez anos, como sentinelas no Taj Mahal, e nunca puderam olhar, e para o meu personagem, isso significa a morte.
Reynaldo: Para mim, enquanto personagem, é supernormal porque cresci obedecendo. Sou filho de militar, é questão de honra não olhar. Há um prazer imenso em seguir regras para esta personagem que pensa “estou fazendo certinho em não olhar”.
Ricardo: E é um condicionamento muito absurdo porque, quando inaugura o Taj Mahal, eles, que estiveram lá tantos anos guardando, também não podem olhar, nem na própria inauguração.
É um pouco como os condicionamentos que a vida nos traz sempre e tantas vezes não refletidos. São esses os pontos da vida que uma pessoa tem de parar e perguntar “porque é que não posso olhar?”.
Reynaldo: Nessa altura da minha vida venho percebendo como tudo é tão dinâmico. Tudo muda o tempo todo: o nosso corpo muda, a nossa mente muda o tempo todo. Penso rigorosamente diferente da forma como pensava com 20 anos, os meus focos são totalmente outros. Tudo muda e temos de acompanhar as mudanças, não nos podemos fixar numa coisa, o universo está mudando. Essa era da tecnologia, as informações chegam até nós e não dá para uma pessoa ficar fixa numa ideia, temos de estar abertos. Mas tem pessoas que fazem questão de ficar presos ali, que não querem olhar.
Ricardo: Há muita gente que se sente confortável dentro da obediência porque é, obviamente, uma zona de conforto.
E é por isso que quando li essa peça fiquei tão mexido, justamente pelo personagem que vou fazer. Eu próprio fui racional a minha vida toda até que percebi que estava no lugar totalmente errado.
Quando deixou a sua profissão e decidiu seguir a carreira de representação?
Ricardo: Exatamente. Foi parte do processo. Mas foi mais do que isso: tive a prova de que não adianta nada você seguir as regras e ser racional para entender todo o mundo se você não olhar para dentro, não souber quem é e não ouvir o que o seu coração está dizendo. Então, quando li esse texto, eu pensei: “Cara, é isso.” Vejo tanto talento sendo desperdiçado, tanta gente sendo desperdiçada só porque seguem o condicionamento, sabe?
Esta peça pode ser uma metáfora para o que o Brasil está a viver neste momento?
Ricardo: A gente está num momento de deceção assim, não é? Como tudo está vindo à tona, e estamos descobrindo que não tinha uma pessoa que realmente nos representasse na política, tem horas que você nem sabe o que vai fazer.
Reynaldo: O brasileiro, agora, está bastante atento, pelo menos grande parte da população está. Nunca tinha visto tanta gente indo para as ruas, tanta gente ativa nas redes sociais, principalmente a classe artística, que tem um enorme poder de comunicação. Mas é muito assustador também como ainda tem tanta gente ignorante, que não quer pensar.
Ricardo: Mas que também não é estimulada a pensar.
Não os deixaram olhar para o Taj, não é?
Ricardo: Exatamente, é muito isso. Tem uma massa grande sendo manipuladíssima exatamente como os Guardas do Taj: o Imperador não quer que eles questionem.
Nota-se uma grande insatisfação com as decisões da informação da Globo. Vocês que trabalham lá sentem isso? Há uma teoria global de que a Globo está pelo sistema político atual.
Reynaldo: Sinceramente, não noto isso. Acho que tendem sempre a mostrar os dois lados, mas é muito delicado o poder da comunicação da imprensa. E hoje está tudo tão bagunçado no Brasil que penso que eles tentam mesmo mostrar todos os lados. Mas o país está dividido mesmo.
Ricardo: Não quer dizer que se você é verde, não é amarelo, você é um pouco dos dois. Então, quando você fala do verde, bem ou mal, você não está defendendo ou indo contra o amarelo, entende? O quem mais me assusta nesse momento é a contundência da ignorância. As pessoas se protegem numa massa que vai contra uma coisa que nem entendem muito bem. Está toda gente muito agressiva, sentindo tudo na flor da pele, tudo é facilmente deturpado. Nesse momento, a própria Globo, como você estava falando, tem uma missão árdua de ser a líder do mercado, de ser das maiores do mundo e conseguir comunicar para todo o mundo.
Vocês conseguem sentir uma responsabilidade acrescida enquanto atores neste momento? Isto na medida em que tanto o cinema como o teatro ou a televisão representam uma fuga, um meio de alienação para o povo. As vossas telenovelas, por exemplo, têm uma grande função lúdica, precisamente por chegarem a tanta gente.
Ricardo: Sim, sempre achei que fosse essa a intenção, sim.
Reynaldo: Por mais que se fale que a telenovela é uma coisa rasa a que muitos nem chamam de arte, não tenho esse preconceito. Adoro fazer novela, gosto de ver e gosto de perceber como atinge uma reflexão sobre temas que pessoas que nem frequentaram a escola vão poder agora pensar. Ainda agora houve uma novela muito forte no Brasil, que foi um sucesso da Gloria Perez, sobre a questão transgénero, que ainda é um assunto tão vítima de preconceito.
Ricardo: Tem gente dos dois lados. De um dizem que a Globo influencia, manipula e aliena as pessoas, mas por outro entretém e é literalmente uma forma de ter contacto com a arte, com a informação, com a vida do outro, o que me faz achar que a Globo tem uma grande missão na televisão brasileira que é a de levar tudo isso a tanta gente.