“Quando era pequeno o meu pai dizia/Olha pra isto que tu fizeste/É só asneiras quando tu apareces/Torna-te um homem, vê lá se cresces”. Assim começa “Submissão”, uma das mais ‘apunkalhadas’ canções dos Xutos & Pontapés, escrita nos anos de crista da banda, mas só editada em single em 1989, entre a vida malvada de “88” e a ressaca de “Gritos Mudos”. Nada de especial, não fosse o facto de ser uma das raras cantadas por Zé Pedro – tal como nos Rolling Stones, o ídolo Keith Richards assume o posto principal de vocalista em mais de uma dezena de momentos espalhados pela discografia. Obrigatória em concertos, é uma espécie de autobiografia condensada em poucos versos como manda a cartilha de punk, que culmina numa frase pertinente na fase por que passa: “Já me fizeram tudo”, um grito nada mudo de quem, entre as altas luzes da admiração e deslumbramento coletivo, está consciente do valor de uma plateia a gritar em uníssono pelo nome.
Aconteceu sábado no Coliseu dos Recreios no dia 4 de novembro. Uma plateia esgotada a chamar por Zé Pedro. No dia, Tim assumira pela primeira vez nas páginas do Expresso aquilo que já se sabia no meio e que todos os que assistiram este ano a concertos dos Xutos & Pontapés já se tinham apercebido. Magro, calado e menos enérgico, este Zé Pedro não era o mesmo de de sempre. E o vocalista reconheceu-o. “No início não sabíamos se a saúde do Zé Pedro ia aguentar o esforço necessário; esta incerteza marcou a digressão, mas graças aos deuses e ao ânimo do Zé tivemos grandes concertos por todo o país, e ele só não tocou em Toronto por imposição nossa”, escreveu.
A declaração formalizou uma inquietação coletiva. Nas redes sociais dos Xutos & Pontapés, os comentários a seguir aos concertos multiplicavam-se. “O que passa com Zé Pedro?”, lia-se amiúde. As letras dos Xutos saíram quase todas da pena de Tim, a música sempre foi assinada em grupo mas, para fora, o homem do leme sempre foi um.
Horas antes do fecho da digressão, Zé Pedro não continha a ansiedade nas redes sociais. Um vídeo da rendição final ao guitarrista, publicado pelos Xutos & Pontapés, amplificava a solidariedade para com o momento delicado. Para Zé Pedro, um caso raro de consenso não só na música mas olhando a vários setores da sociedade, a última palavra com uma uma revelação importante. Na segunda-feira, dia 6, iniciaria novo tratamento.
“Entrar em qualquer sala com lotação esgotada é maravilhoso. Os Coliseus têm uma magia muito própria e o concerto de ontem foi muito especial. Como sabem tenho andado na luta da vida com alguns problemas de saúde… Tentei e tento dar sempre o melhor de mim. O vosso carinho, o vosso amor, a vossa energia, toda a força que me transmitem é-me tão forte e vital que só posso humildemente agradecer… Obrigado também a todos os que ontem gritaram o meu nome e fizeram com que tivesse força para continuar naquele palco até ao fim. Obrigado à [mulher] Cristina e aos X&P por tudo e por tanto. Amanhã começo um novo tratamento e garanto que é para GANHAR. EU SEI LUTAR E ACREDITO”, confessou e rematou em maiúsculas. Quem o conhece sabe que a forma tem a força do conteúdo.
Na longa estrada de 38 anos dos Xutos & Pontapés, não é caso inédito nem para Zé Pedro, nem para a banda – João Cabeleira chegou a submeter-se a um tratamento ao braço em Inglaterra e Tim sofreu uma infeção ocular que quase o deixou cego do olho direito. A 1 de agosto, dia nacional do fogo posto no calendário dos Xutos, sofreu uma hemorragia. “Foi o dia em que parei tudo: os consumos de álcool, droga e tabaco”, confessou em entrevista recente à Blitz. Esteve perto do abismo e foi a namorada de então, Xana dos Rádio Macau, a levá-lo ao hospital a tempo de o salvar. Poucas semanas depois já estava de novo em palco à maneira dele. Sorridente, enérgico e disponível para os fãs de Bragança a Lisboa. “Sempre fui educado nessa fórmula do dar e receber. Em cima do palco, então, essa maneira de estar é crucial. Recebemos muita energia e, quando não conseguimos dar, eu e os meus colegas ficamos um bocado pírulas”, explicava na mesma entrevista.
No mesma ocasião, foi-lhe diagnosticada Hepatite C. “Não sei como contraí a doença. Pode ter sido por causa dos abusos com droga injetável e álcool ou se calhar foi uma reativação do vírus que tive aos 12 anos”, admitia ao Sapo. Dez anos depois, submeteu-se a um transplante de fígado. A recuperação em tempo recorde fê-lo voltar no NOS Alive, na noite em que os Xutos & Pontapés partilhavam o palco com Iggy Pop e os Stooges. “A primeira coisa que disse quando acordei da anestesia foi: tenho de ir tocar ao Alive”. E conseguiu.
“Agarrei-me à vida”, resumia na mesma entrevista. O rock’n’roll não é para meninos e se alguém em Portugal o vive à letra é José Pedro dos Reis, natural dos Olivais. Em Portugal, o símbolo maior de uma música que mudou mentalidades, consciências, comunidades e pessoas. A tentação sempre morou ao lado mas às vezes é necessário dizer não de vez.
O regresso aos palcos tinha dia e local marcado. Os Xutos & Pontapés vão (iam) entrar em 2018 em Albufeira, a pensar num novo álbum e com a nova “Sementes do Impossível”, escrita para o filme “Índice Médio de Felicidade”, de Joaquim Leitão, a fazer prova da resiliência.