Zé Pedro. O nome próprio do rock português

“E mais que uma onda, mais que uma maré/Tentaram prendê-lo, impor-lhe uma fé/Mas, vogando à vontade, rompendo a saudade/Vai quem já nada teme, vai o homem do leme”. Resistiu até onde pôde José Pedro dos Reis, o Zé Pedro rock’n’roll, símbolo maior da música elétrica portuguesa, caso ímpar de consenso, anti-vedetismo e apadrinhamento de novas…

Em grande sofrimento, David Bowie concluiu as gravações de “Blackstar”, um epitáfio não assumido mas interpretado dessa forma, editado três dias antes da morte ser anunciada numa segunda-feira escura de janeiro. Debilitado fisicamente, Leonard Cohen guardou as últimas forças para “You Want It Darker”, uma última ligação à Terra antes de conhecer a morada de Deus. Em esforço, mas ainda confiante na recuperação, Zé Pedro concluiu a digressão dos Xutos & Pontapés faz hoje um mês menos cinco dias. A 4 de Novembro, a última noite em que o rock arregaçou as mangas para o combate: já não a luta pela afirmação de uma geração dividida entre as duas máximas do punk, o no future e o do it yourself, mas a mais inglória de todas as lutas. A da sobrevivência.

Nesse sábado à noite, os fãs já conheciam a condição precária em que Zé Pedro se encontrava. E saltaram como uma claque para dar força ao ídolo. O senhor rock’n’roll. José Pedro Amaro dos Santos Reis, natural do bairro dos Olivais. Símbolo maior da arte elétrica de ser português, a guitarra mais carismática do rock, músico e entusiasta na mesma medida, agitador por natureza, autor de programas de rádio – o último “Zé Pedro Rock’n’Roll” na Radar” –, apresentador do programa “Vira o Vídeo” da RTP2 na aurora dos anos 90, sócio do clube Johnny Guitar que na mesma época foi um tubo de ensaio para bandas da nova música portuguesa, e…jornalista. Sim, Zé Pedro começou por escrever no “Diário de Lisboa”. Aventurou-se por festivais europeus quando não havia Interail nem voos low cost. Só minis, boleias e ácidos que se experimentavam para ver um novo dia a nascer. “Eu já fiz tudo/submissão”, exclamava na canção. A autobiografia em versos punk que quase sempre tinha lugar nos concertos dos Xutos.

Zé Pedro, o músico admirado por todos, o amigo da generosidade infinita, morreu em casa aos 61 anos, vítima de doença prolongada. “Partiu em paz”, sintetizou um breve e consternado comunicado. As cerimónias fúnebres estão marcadas para amanhã de manhã. Mas sabemos que em personalidades desta magnitude, o amanhã nunca morre.

Zé Pedro resistiu até ao último concerto. “Como sabem tenho andado na luta da vida com alguns problemas de saúde… Tentei e tento dar sempre o melhor de mim. O vosso carinho, o vosso amor, a vossa energia, toda a força que me transmitem é-me tão forte e vital que só posso humildemente agradecer… Obrigado também a todos os que ontem [4 de novembro] gritaram o meu nome e fizeram com que tivesse força para continuar naquele palco até ao fim. Obrigado à [mulher] Cristina e aos X&P por tudo e por tanto. Amanhã começo um novo tratamento e garanto que é para GANHAR. EU SEI LUTAR E ACREDITO”, escreveu antes de começar os tratamentos.

Há um ano sofrera uma recaída. O Zé Pedro enérgico, comunicativo e telepático dos concertos perdera a energia. Chegou a pesar menos de 50 quilos durante os últimos doze meses. A banda foi obrigada a reagir. Encurtou o tempo do espetáculo. Passou a incluir um momento acústico para preservar a saúde do guitarrista. E nem sequer deixou Zé Pedro voar para o Canadá. “No início não sabíamos se a saúde do Zé Pedro ia aguentar o esforço necessário; esta incerteza marcou a digressão, mas graças aos deuses e ao ânimo do Zé tivemos grandes concertos por todo o país, e ele só não tocou em Toronto por imposição nossa”, reconheciam publicamente os Xutos nas páginas do “Expresso”. Os fãs já suspeitavam do problema e após cada concerto, a questão repetia-se nas redes sociais. “O que se passa, Zé Pedro?”

O cancioneiro dos Xutos & Pontapés está cheio de metáforas para o momento que não se julgava ser possível. Até partir num “dia cinzento” como o do “Homem do Leme”. Para o bem e para o mal, “olá, oh vida malvada” é um prológo necessário para compreender o que é o modo de vida rock’n’roll. “A qualquer dia/A qualquer hora/Vou estoirar, pra sempre/Mas entretanto/enquanto tu duras/Tu pões-me tão quente”, rasga imparável “À Minha Maneira”.

O histórico público de saúde de Zé Pedro contrastava com o sorriso que sempre o acompanhou. Caso raro de consenso, era de uma bondade contagiante. E de uma generosidade ímpar, vinda de quem se habituou a ser amado entre a multidão e a ter uma autêntica procissão de fiéis a segui-lo de Bragança a Lisboa, Alentejo, Algarve, ilhas e comunidades. Dele não se conheciam inimigos. Para os músicos de rock, e não só, era uma espécie de pai adotivo. Um amigo para as ocasiões que fazia questão de acompanhar perto novas bandas e apadrinhá-las.

Ao longo da sua história, os Xutos & Pontapés levaram seus contemporâneos para a estrada como Peste & Sida, Censurados ou os quase esquecidos K2O3. Nos grandes festivais, ou em salas mais pequenas, era hábito vê-lo a assistir ao amanhã da música portuguesa, não se coibindo de elogiar publicamente novos talentos. E não só de bandas rock. Era conhecida a sua admiração pelos Da Weasel, uma das bandas que o Johnny Guitar viu crescer. Na alvorada da década de 90, quando os Xutos & Pontapés passaram por uma crise que quase os deitou ao tapete, era a segunda casa.

Namorava então com Xana dos Rádio Macau que, anos mais tarde, num dia 1 de agosto como o da canção, o levou ao hospital a tempo de ser salvo. “Foi o dia em que parei tudo: os consumos de álcool, droga e tabaco”, contava à “Blitz”. À maneira dele, poucas semanas depois já estava de novo em palco. “Sempre fui educado a dar e receber. Em cima do palco, então, essa maneira de estar é crucial. Recebemos muita energia e, quando não conseguimos dar, eu e os meus colegas ficamos um bocado pírulas”, explicava.

Sem nunca negar o passado, guardou os excessos num buraco fundo. “Hoje em dia não bebo nem me drogo. Na minha vida tudo tem o seu tempo. Nunca me considerei um bêbado ou um toxicodependente. Andei lá, se calhar fui mais longe do que me era permitido, mas sempre tive uma noção. Ter os Xutos & Pontapés na minha vida penso que me terá safo. Ter um objectivo na vida torna mais fácil ultrapassar certas coisas. Certo é que desde que fui parar ao hospital, de um dia para o outro, as coisas limparam-se dentro da minha cabeça. Não faço nenhum esforço para não beber ou para não me drogar. Sem abandonar o que gostava de fazer: tocar, compor, falar com as pessoas e ter os meus amores. Fazer programas de rádio e de televisão, ouvir os meus discos”, declarava em 2005.

Acabaria por casar mas com Cristina Avides Moreira, após quatro anos de romance. Nunca escondeu a vontade de ter filhos mas esse talvez tenha sido um dos poucos sonhos que deixou por concretizar. “Um pinga-amor”, descreve a irmã Helena Reis, autora do livro “Não Sou o Único” publicado em 2005 em que se recorda, por exemplo, o namoro com Mizé, a sobrinha de…Amália Rodrigues, e filha da [fadista ainda viva] Celeste Rodrigues de 94 anos.

Há quem defenda que Zé Pedro era maior do que os Xutos & Pontapés. Ou, pelo menos, mais consensual, mas essa foi sempre a sua camisola. Não a única. No Johnny Guitar, nasceram os Palma’s Gang, um supergrupo com Zé Pedro e Kalú (Xutos & Pontapés); Flak e Alex (Rádio Macau) que eletrificou o “Portugal, Portugal” retratado por Jorge Palma. E com a mesma banda de suporte mas a voz (e bandana), surgiam os Cavacos, paródia carnavalesca ao Primeiro-Ministro de Boliqueime. Mais episódicos, os Maduros duraram pouco mais do que dois concertos: na ZDB e em Paredes de Coura. Zé Pedro assumiu a voz de comando do grupo e, em nome próprio, reuniu várias participações em “Convidado: Zé Pedro”, uma espécie de álbum a solo, que lançou as bases para aquele que seria o derradeiro satélite dos Xutos: os Ladrões do Tempo que, em 2015, gravaram o primeiro e único álbum.

No entanto, é com os Xutos & Pontapés que a vida de Zé Pedro se confunde. Na derradeira digressão, a canção escolhida para fechar os concertos, “Para Sempre” era recebida como uma dedicatória final da banda ao fundador e vice-versa. “Juro, meu amor que sempre/Voltarei, p’ra sempre/Ai, meu amor/O que eu já chorei por ti/Mas sempre/P’ra sempre/Gostarei de ti”. Perante o contexto, a letra funcionava como uma espécie de chuva dissolvente. Uma catarse emocional perante a incerteza.

Zé Pedro, punk e cavalheiro, aquele que só não atendia o telefone quando não podia, que ajudava a transportar as câmaras por cortesia, “a enciclopédia musical” como lhe chamou Adolfo Luxúria Canibal, foi até ao limite das forças. O palco era a sala de estar de um músico que não se pode definir só como guitarrista e de um instrumentista definido melhor pelo charme, carisma e empatia do que pelo virtuosismo. Porque a escola de onde vinha era o punk e três acordes chegavam para mudar o mundo.

Não perdeu essa “vontade de ir, correr o mundo e partir” nem o sorriso adolescente de quem se recusou a envelhecer.

Um dia, os Xutos & Pontapés escreveram um fado. A versão original, incluída em “Cerco” (de 1985), era nervosa e impaciente. Dez anos depois, a fera amansada no “Unplugged da Antena 3”, o disco da reabilitação, trouxe à tona “O Homem do Leme” como ainda hoje o reconhecemos. “No fundo do mar/Jazem os outros, os que lá ficaram/Em dias cinzentos/Descanso eterno lá encontraram/E mais que uma onda, mais que uma maré/Tentaram prendê-lo, impor-lhe uma fé/Mas, vogando à vontade, rompendo a saudade/Vai quem já nada teme, vai o homem do leme/E uma vontade de rir, nasce do fundo do ser/E uma vontade de ir, correr o mundo e partir”. “A vida é sempre a perder” não define, de todo, a vida cheia de Zé Pedro. Até porque neste caso, a perda foi coletiva. De um ícone, reconhecido e admirado por gerações e tribos, e de um ser que deixa um catálogo de elogios e uma escola de vida.

Amanhã, a missa realiza-se às 14h00 e o corpo estará nos Jerónimos às 16h00.

“Conheci o Zé Pedro ainda éramos os dois miúdos a começar na música, ainda eu ensaiava na Gago Coutinho, naqueles tempos do VáVá. Ele já era um catalisador. Demo-nos logo bem e isso ficou para a vida toda, tanto com ele como com o resto da banda. Havia em nós um sentimento que ia muito para lá da música, um sentimento de amizade profunda. Era um amigo, um irmão, o meu filho que o conhece desde pequeno também o adorava. Continuávamos a falar quase todas as semanas e éramos visita de casa um do outro. O Zé Pedro era de uma bondade extrema com toda a gente, um filantropo. E deu tanto, tanto à música. Nunca o ouvi dizer que não a alguma coisa ou a alguém. Quero deixar uma profunda palavra de pesar a toda a gente que gostava do Zé Pedro e à mulher, Cristina, incansável. Vai-me fazer muita, muita falta fisicamente, porque emocionalmente vai estar sempre comigo. “Os Anjos também morrem”