Michael Flynn. Culpa e confessor

Uma das mais importantes figuras na campanha de Trump mudou de lado e colabora agora com a investigação.

Os estilhaços da investigação especial às ligações russas ganham novas formas e tombam cada vez mais perto do Presidente norte-americano. O ex-conselheiro da Casa Branca para a Segurança Nacional, Michael Flynn, um antigo general americano caído em desgraça e que mais tarde conquistou a confiança e um lugar no Governo de Donald Trump, confessou ontem ter mentido deliberadamente ao FBI num interrogatório de finais de janeiro, somente quatro dias depois de a nova Administração ter tomado posse e Donald Trump se ter sentado pela primeira vez na Sala Oval. A notícia caiu como uma bomba nos meios de comunicação americanos e não tanto por Flynn se ter declarado culpado do crime de perjúrio, que pode resultar numa pena de cinco anos de prisão. Ontem, na verdade, o antigo general confirmou mais do que a sua culpa: reconheceu também que está a colaborar com a equipa do procurador especial Robert Mueller e que já transmitiu informações que implicam pelo menos «um responsável muito importante» na campanha de Donald Trump.

Michael Flynn, por outras palavras, já não responde ao Presidente norte-americano ou aos seus advogados, mas sim à investigação, com quem espera negociar um acordo de delação que o poupe aos cinco anos de cadeia e salve o seu filho, também comprometido no caso. Os primeiros rumores de que Flynn mudara de alianças e preparava um acordo vieram a público há duas semanas, no dia em que o New York Times avançou que as duas equipas jurídicas – a da Casa Branca e a do antigo general – estavam de contactos cortados. Trata-se de um dado fundamental e possivelmente a maior conquista até ao momento da investigação. Flynn foi um dos primeiros funcionários na campanha do Presidente americano, chegou a um dos mais importantes postos do Governo e tem ligações muito fortes ao Kremlin e a pessoas próximas de Vladimir Putin. O acordo de delação nada confirma e pouco explica, mas a investigação tem agora a porta aberta para os assuntos mais íntimos da campanha Trump. É que Flynn chegou a ser pensado para o lugar de candidato a vice-Presidente.

O crime de perjúrio é grave e, no entanto, ontem parecia estar num segundo plano da atenção americana. O caso remonta ao início do ano, quando surgiram na imprensa alegações de que o ex-general americano entrara em contacto com o homem que então era o embaixador russo em Washington, Sergey Kislyak, num momento em que o seu Governo ainda não havia tomado posse. A lei americana impede que cidadãos entrem em contacto com representantes de outros países a título próprio e com a intenção de mudarem a sua política em relação aos Estados Unidos. Flynn, no entanto, terá feito isso mesmo. O antigo general falou pelo menos duas vezes com o embaixador russo, com quem discutiu as sanções económicas que Barack Obama acabara de anunciar contra Moscovo e um voto daqueles dias no Conselho de Segurança das Nações Unidas para censurar a construção de colonatos israelitas no território palestiniano ocupado. Questionado sobre estes contactos pelo vice-Presidente Mike Pence e a procuradora-geral em funções, Sally Yates, Flynn mentiu dizendo que os contactos não forem para lá de chamadas de cortesia. Questionado pelo FBI, Flynn mentiu uma segunda vez, reiterando o que antes afirmara. As suas chamadas telefónicas, porém, aconteceram em ligações não protegidas e foram detetadas pelos serviços de espionagem americanos, que puseram a Casa Branca ao corrente. Flynn foi despedido dias depois – segundo Trump, por ter mentido a Pence, e não pelos contactos com Moscovo. 

E agora?

A Casa Branca não soou ontem quaisquer alarmes e o advogado encarregado do caso russo declarou que nada do que foi revelado por Flynn «implica outra pessoa para além dele próprio». O próprio Michael Flynn anunciou ontem que não é culpado das acusações conspiratórias que lhe vão sendo atiradas. «Vem sendo extraordinariamente doloroso suportar estes meses todos de acusações falsas de ‘traição’ ou outros atos chocantes», escreveu o ex-general no comunicado em se deu a saber culpado e confissor. Nessa nota à imprensa, Flynn oferece também um vislumbre para as razões que o levaram a colaborar com Mueller: segundo avançava ontem o Washington Post, o antigo conselheiro da Casa Branca sente que o Presidente o abandonou e que a sós não consegue suportar as dívidas de mais de um milhão de dólares a que este processo o obrigou – a sua casa foi já colocada à venda, por exemplo. «Acusações falsas dessa natureza contrariam tudo o que fiz e o que defendi. Mas reconheço que as ações que hoje admiti cometer em tribunal foram erradas, e, com fé em Deus, estou a tentar corrigir as coisas. A minha confissão de culpado ao gabinete do procurador especial é eco de uma decisão que tomei tendo em conta os melhores interesses da minha família e do meu país».

A Donald Trump resta esperar para ver. A Flynn, cabe ainda negociar o acordo de delação que já vem discutindo com Mueller há pelo menos duas semanas. À imprensa, cabia ontem desfiar o cordel do que Michael Flynn sabe e está disposto a contar. A cadeia televisiva ABC avança o mais importante relato: segundo um amigo próximo do ex-general, conta a televisão americana, Flynn está disposto a revelar à investigação especial que foi o próprio Trump quem exigiu que fosse criado um canal de comunicação russo nos dias que se seguiram às eleições, inicialmente concebido para negociar uma campanha conjunta na Síria de combate contra o grupo Estado Islâmico. Outro relato, lançado por um comentador da mesma estação, afirmava que o Presidente americano pediu um elo russo durante a campanha – ambas alegações contradizem ostensivamente as posições de Donald Trump sobre os contactos russos.

O Presidente dos Estados Unidos não reagiu de imediato às notícias. O Partido Republicano, por sua vez, tentava desviar a atenção americana e manobrá-la de regresso ao pacote de reforma fiscal que esperava aprovar ontem ao final do dia. A aprovação das alterações aos impostos pode revelar-se a primeira vitória legislativa do novo Presidente, que, cumprido um ano de mandato e apesar de ter maiorias conservadoras em ambas as câmaras do Congresso, não conseguiu avançar em nenhum tema de bandeira.