Francisco Pérez Torrecilla é presidente da Câmara de Sacedón, uma terra que perdeu 20% da população nos últimos dez anos devido aos problemas de água na denominada Cabeceira do Tejo, o conjunto de barragens de Entrepeñas e Buendia que estão hoje reduzidas a pouco mais de 9% da sua capacidade devido aos transvases de água para o rio Segura que alimenta a agricultura de regadio no Levante espanhol.
Desde quando se sente a falta de água em Entrepeñas e Buendia?
As barragens de Entrepeñas e Buendia são do final dos anos 1950, com uma diferença de dois anos entre uma e outra. Os níveis andaram sempre no máximo até final dos anos 1970, princípio dos anos 1980, em que se pôs a funcionar o transvase Tejo-Segura e começou a haver flutuações de nível. Em 1995, tivemos um episódio de seca muito maior que este, estamos a caminho de chegar ao nível de então, mas nesse ano foi impressionante. Agora temos 231 hectómetros cúbicos armazenados entre as duas (sempre falamos nas duas juntas porque são um complexo) e naquele ano tivemos 150. Não é o pior momento da história das barragens, mas é um dos piores. Tendo em conta que estamos no princípio da seca, uma seca que pode durar mais alguns anos – esperemos que não – e já as barragens da Cabeceira do Tejo estão completamente vazias. Esta fotografia de 2011 [de Entrepeñas] serve de exemplo porque foi o último ano em que as barragens estiveram com uma capacidade aceitável – a média das duas era de 52%. Desde aí começaram a descer até chegar ao que temos hoje, que são 9,3%.
Continuam a fazer-se transvases de água do Tejo para o Segura?
Há uma norma que não permite fazer transvases abaixo dos 368 hectómetros cúbicos, quantidade que foi alcançada no mês de maio, ou seja, desde maio de 2017 não há transvases. Agora, o curso normal do rio tem de continuar, não podemos fechar as comportas das represas e das barragens e deixar o rio seco, o rio tem de manter o seu caudal. Temos de seguir escoando água para que o rio possa continuar a viver, mesmo que seja mal, porque se pode ver como está contaminado.
Diz que não há transvases desde Maio, mas a verdade é que se fala de um transvase encoberto numa sexta-feira às 20h (dia 29 de setembro).
Oficialmente não. O que fez o governo foi disfarçá-lo, chamando-lhe cessão de direitos. Transvase é passar a água de um lugar para outro e foi isso que se fez, mesmo que chamem cessão de direitos ou o que seja. Retiraram água de Entrepeñas e Buendia, em estado de emergência, para a levar para outra bacia, a do Segura.
Qual é a justificação do governo para esta cessão?
Justificam dizendo que a normativa permite fazer cessões, venda de água entre proprietários de direitos. Metem uma série de palavras técnicas para nos tentarem convencer que não foi um transvase, mas apenas uma cessão de direitos adquiridos pelos agricultores de regadio de Estremeira – que são agricultores de um pouco mais abaixo no Tejo – aos agricultores de regadio de Múrcia, no Levante. Para mim, isto é dissimular a realidade. Seguramente a lei dá cobertura ao argumento usado pelo Estado, mas no final trata-se de um transvase. E com as barragens em estado de emergência.
No Sul de Espanha continuam a pedir mais transvases e a dizer que a água é de todos.
É curioso que desde o Levante se tente convencer que a água é de todos e quem mais a usa são eles. A água é de todos, mas também é nossa. Ou só é de todos os do Levante? A água é de todos e é preciso reparti-la, há 38 anos que repartimos água, que somos solidários com o Levante e já transvazamos entre sete a oito barragens cheias de Entrepeñas e Buendia, mais de 15 mil hectómetros cúbicos de água. Se isso não é ser solidário, se isso não é repartir, se não é fazer justiça ao princípio de água para todos, que nos expliquem então o que é? Se o que se está a fazer é impedir que se cubram as necessidades de uma bacia para cobrir as necessidades de outra, isso não é água para todos.
Estamos perante uma guerra de água?
O momento que estamos a atravessar é consequência de uma má gestão. As guerras da água ou a guerra da água entre o Tejo e o Segura são consequência da má gestão. Se o Estado gerisse bem os recursos não haveria motivo para isto. O entendimento é que a bacia cedente tem prioridade sobre a bacia recetora e que se transvazam os excedentes, se isso não se cumpre provocamos um conflito, não é uma guerra, mas é um conflito. Há alguém que decide que sobra água ao Tejo, o que não é certo, e que no Segura há uma necessidade grande de água, o que também não é verdade. Se alguém decide por nós e nos limita a capacidade de desenvolvimento acabamos por entrar em conflito. Com quem? Com o Estado que é nos obriga a passar por esta situação e com a outra bacia que obriga o Estado a tirar água daqui. Pode chamar-se guerra? Se nos chamam guerreiros por isto, está sumamente justificado. Temos de nos defender; nós vivemos da água, o nosso futuro é a água. Se for preciso entrar em guerra, entramos.
Que estão a pensar fazer?
Nesta comarca temos um problema sério há 38 anos e isso acaba por gerar um certo conformismo. Em 38 anos tivemos muitos episódios como este, de subidas e descidas do Tejo e nunca se resolveu nada, antes pelo contrário, temos ficado cada vez pior. Há pouca esperança na população da zona de que haja alguma solução. Talvez seja a natureza, no fim, a colocar-lhe um ponto final. Face ao que está acontecer na atualidade, os políticos, que são quem legisla, terão de tomar alguma decisão. Desde aqui quase nada podemos fazer. Somos poucos, esta é uma zona bastante despovoada, os municípios são pequenos (temos 22 municípios à volta das barragens e não chega a dez mil habitantes). Vamos continuar a protestar, reivindicar. Desde a Associação de Municípios Ribeirinhos tentamos fazer chegar o problema aos políticos, sobretudo ao parlamento; encomendamos alguns estudos à universidade sobre as consequências socioeconómicas do transvase e iremos à Europa, se for preciso. Não é muito bélico [risos], é até bastante razoável.
De um lado há muitos, com muita força, e do outro, poucos e débeis?
O problema também é económico. Se aqui não há água, prejudica-se diretamente dez mil pessoas, no máximo. Se não há água no Levante, prejudica-se muitas mais. Mas se tivermos em conta que, além de prejudicar dez mil pessoas, estamos a destruir um rio, estamos a matar a pouco e pouco o rio Tejo, havia que lhe dar maior consideração. Aqui só temos a água da chuva, da neve para recuperar as barragens. No Levante, a tecnologia de dessalinização está muito avançada. Já não é tão caro, nem tão complicado, montar centrais de dessalinização. No entanto, não se instalam. Porquê? Porque os interesses políticos vão, não justamente, mas logicamente, para onde há mais votos. Há ainda interesses económicos, a água daqui sai muito barata, quase de graça, e lá custa muito mais dinheiro, o que quer dizer que alguém no meio está a fazer negócio com a água. Conseguimos pouco ao longo dos anos, mas estamos no momento certo para conseguir que, pelo menos, o transvase do Tejo-Segura deixe de ser tão injusto como tem sido até agora. Estamos no momento certo porque as barragens estão quase vazias, a opinião pública está a começar a reagir porque estamos a destruir um rio quase por completo: o Tejo é um esgoto, desde Bolarque para baixo, é um autêntico esgoto. Quando o rio Jarama se junta ao Tejo é impressionante. Isto é o maior exemplo do que não se pode fazer com um rio. Estamos num ponto de inflexão, a partir daqui será preciso legislar de outra maneira, não podemos continuar a atacar um rio como o Tejo. Além disso, também temos a Europa que, de vez em quando, nos dá uma mão. A Europa já aconselhou o governo de Espanha a que mude a sua política hídrica porque tem sido um fracasso. Tudo isto joga a nosso favor. Estamos no princípio do fim do transvase Tejo-Segura, tal como o conhecemos até agora.
O governo espanhol não está a cumprir a diretiva europeia?
Não. O caso do governo é impressionante, logo porque faz vista grossa ao princípio de que a bacia cedente tem preferência no uso da água. A própria União Europeia aconselhou o governo espanhol a aumentar os caudais ecológicos. Se se estabelece a partir do Estado como limite mínimo do caudal ecológico seis metros cúbicos por segundo, que não é nada, e não se permite que suba acima disso, cumpre-se a normativa, mas uma normativa feita à medida da sua própria política, que nada tem a ver com o indicado pela UE. A Europa já nos puxou as orelhas porque não estamos a cumprir com aquilo que é considerado razoável. Os nossos planos hidrológicos são alvo de processos em tribunal, ninguém está de acordo com eles, sobretudo os do Tejo, do Segura, do Júcar.
Imagino que tenha lido o relatório da Greenpeace sobre a seca, nele fala-se de que 75% do território de Espanha é zona suscetível de desertificação, no entanto, a política hídrica espanhola continua a favorecer a agricultura de regadio no sul de Espanha.
É impossível converter um deserto num pomar e é isso que se está a tentar com o transvase Tejo-Segura e com o Pacto Nacional de Água que se está a maquinar desde Madrid, e digo maquinar porque se está a impor desde o ministério uma forma de continuar a fazer política com a água. Procura-se interligar mais bacias, sempre com a intenção de levar mais água ao deserto, a toda essa zona de Múrcia, Almeria, etc. Claro que, como diz a ministra, é preciso estabelecer um pacto, mas não tem que incluir transvases entre bacias e a água de todos não se pode transformar em água para Múrcia ou Valência.
Parece-lhe que isso poderá mudar?
Pode piorar se tivermos mais dois anos de seca, mas estamos no momento certo. Por um lado, os cidadãos começam a pensar de outra forma em relação ao meio ambiente. Por outro lado, percebemos que a gestão que temos tido não é das melhores pois estamos no princípio de um período de seca e as barragens estão vazias (com 30% de média em Espanha).
Quer dizer que esta seca pode ser um mal que vem por bem?
Falas com as pessoas e é o que te dizem: “deveria haver mais um ano de seca porque senão não nos ligam nenhuma”. A ideia é que ou batemos no fundo ou nunca mais vamos recuperar.