‘O Governo espanhol tem uma visão muito econométrica dos rios’

Grande especialista em matéria de gestão hídrica, Antonio Luengo considera que Madrid não tem interesse em rever a convenção com Portugal sobre a gestão dos rios comuns.

Qual o estado atual do rio Tejo e o que estão a tentar fazer para o recuperar?

A situação no rio Tejo é muito diferencial. Podemos dizer que existem três partes: a cabeceira do rio, o Tejo intermédio e o baixo Tejo, incluindo Portugal. A cabeceira do Tejo encontra-se numa situação de emergência, praticamente sem água. O Tejo médio tem alguma água, mas muito contaminada; e a partir de que entra em funcionamento o sistema central da serra de Gredos, até à Estremadura e Portugal, o rio recupera-se. Recupera, por um lado, a qualidade da água, por ter uma maior capacidade de eluição e, por outro, a quantidade. Até porque há que transferir para Portugal toda a água contemplada no Convénio de Albufeira, 2700 hectómetros cúbicos.

E têm cumprido o convénio?

Se o considerarmos globalmente, sim. Agora, o tema está em como se cumpre. Em Portugal, queixam-se bastante não do aspeto quantitativo, mas qualitativo. Teoricamente, cumpre-se, mas a realidade é que em Portugal o rio está a sofrer uma situação muito lamentável, pela atual descida do nível do caudal e pelas más condições da água que se está a transferir atualmente.

O problema é que a água está a ser gerida como Espanha quer e não como Portugal quer. 

Como o atual Governo quer, porque nós também não estamos de acordo com a forma como o Executivo está a gerir o Tejo, porque a nós também nos prejudica.

Mas isso não é apenas uma questão política entre o PP e o PSOE, quando a situação é consequência do que foram fazendo os governos dos dois partidos?

Esse é um argumento muito batido. A História não serve para continuar a fazer disparates. Quero lá saber quem os cometeu, o que importa é que, na atualidade, a gestão da água não se pode fazer tal como se fazia há 30 anos. Entre outras coisas, porque pelo meio temos um documento que me parece essencial que é a Diretiva Quadro da Água, de 2002, que determina a situação da água na Europa. Já não se podem usar os parâmetros com que se geria a água em Espanha.

O Governo espanhol está a cumprir a diretiva?

Não. Uma delegação de deputados europeus visitou Espanha e escreveu no seu relatório que não se estava a cumprir a diretiva e que o Tejo não se podia manter nas condições de stress hídrico a que o Governo espanhol o estava a submeter.

A União Europeia (UE) deveria pressionar mais o Executivo?

A UE é um árbitro, uma super-estrutura que funciona com uma lentidão às vezes exasperante. Só que a UE é lenta na sua conceção, é lenta na sua estrutura, é lenta na sua tomada de decisões, mas acabará por decidir e dizer ao Governo espanhol que assim não pode seguir, que tem de se esforçar mais para garantir a qualidade e a quantidade de água, porque estamos numa situação muito preocupante em Espanha.

Portugal já referiu que queria discutir com Espanha a gestão comum das águas, parece-lhe haver abertura do Governo espanhol para acordar um novo convénio que possa regular melhor essa gestão?

Não acredito que Espanha aceite porque o Governo espanhol tem uma visão muito econométrica dos rios. Espanha tem o Tejo, parte do Douro e o Guadiana muito concebidos em função do Levante, de toda a exportação de frutas para a Europa e, evidentemente, não será fácil que abandone essa posição, porque não a abandona nem sequer de forma interna, muito menos a nível internacional, onde os parâmetros são mais lentos e de poder.

E o Levante continua a pedir mais água.

No Levante, há uma opinião maioritária que defende que se lhes tem que transvasar água de qualquer rio. Sabem que a Cabeceira do Tejo está seca e estão a agora a voltar à ideia do transvase Ebro-Tajo ou Ebro-Segura que é uma quimera, porque nem economicamente, nem em termos ambientais, a União Europeia deixará avançar a questão. E estão à procura de outra alternativa, que seria transvasar água do Douro para a Cabeceira do Tejo e daí para o Segura. Outra quimera. Tentam encontrar soluções sem procurar onde têm de procurar, que é na dessalinização. O problema aí é que estão a contaminar o Mediterrâneo. Ao mar Menor encheram-no de nitratos, a ponto de ser incapaz de autoregenerar-se.

O presidente da região de Múrcia, Fernando López Miras, pediu ao primeiro-ministro espanhol, Mariano Rajoy, que promova uma revisão da Constituição para que a água seja consagrada como pertença de todos os espanhóis, parece-lhe que isso irá acontecer?

Isso é uma armadilha. O que diz é uma obviedade e, não querendo ser ofensivo, quase analfabeto. A Diretiva Quadro da Água afirma que a água é um património e é preciso cuidá-la. Em Espanha, é um bem público, na verdade, por onde passa, denomina-se domínio público hidráulico. Portanto, é uma obviedade que por trás esconde o que realmente quer dizer, de que sendo de Múrcia, tem uma agricultura que exige muito mais água do que aquela que possui e, como somos todos Espanha, então que lhe mandem água do Minho. Se exigir essa revisão, estaremos de acordo, mas se for com base na Diretiva Quadro da Água: prioridade à bacia cedente. Cada bacia tem de ajustar o seu gasto à água que tem.

Parece que é preciso mudar também a política agrícola de Espanha.

Há que ser racional na utilização da água para a agricultura. Dou um exemplo, este verão, em Múrcia, andaram a oferecer alfaces em todas as praias. Estão a produzir acima da capacidade de venda e gastam água para produzir um alimento que depois têm de deitar fora – não é a primeira vez que se queimam colheitas. Parece-me um disparate gastar um património escasso para sobreprodução na bacia mediterrânica. 

A água transformou-se num objeto comercializável, é preciso mudar essa ideia de que se pode comprar e vender água, não?

Em Espanha, a lei permite que eu peça a qualquer confederação [que gerem as bacias dos rios] um hectómetro de água, que não a utilize e a venda a outro. Parece-me um disparate! Se é património público, só o Estado e as administrações públicas podem geri-lo. A água não pode estar no mercado. A Diretiva Quadro já o disse, a água é património e não objeto de mercado, daí que não pode vender-se entre privados. Não digo que não possa haver transferências, mas têm de estar reguladas pelas administrações públicas. Se não, transformamo-nos em especuladores.

Mas se se transformou em negócio, será mais difícil impedi-lo?

Está-se a fazer muito negócio com a água e já se fala de ‘águatenentes’, como se terranentes, mas para água. Há pessoas que ganham muito dinheiro com a água.

E como se impede isso?

Facilmente, proibindo a compra e venda privadas. Tem de ser a administração pública a fazer as transferências, criando um centro de intercâmbio de água. A água que não utilizo segue para esse centro e quem precisa, vai aí pedir. 

E esses terratenentes ou ‘águatenentes’, como lhe chamou, não têm mais força junto do poder central que os municípios ribeirinhos?

Muito mais. Eu sou presidente de câmara de um desses municípios ribeirinhos [Villalba del Rey, junto à barragem de Buendia], todos esses municípios em conjunto não chegam a nove mil habitantes. Uma pessoa vai à página na internet do SCRATS, o Sindicato Central de Regantes do Aqueduto Tejo-Segura, e vê um poderio económico quase assustador. Mas sempre foi assim, desde a Idade do Ferro que aquele que tinha as armas impunha-se aos demais, e sempre houve tendências sociais contra isso e são essas que é preciso trabalhar.

E por que não usam o poder do governo de Castilla La Mancha?

Somos uma região pobre; geograficamente grande, com escassa população. E temos todas as bacias hidrográficas de Espanha, salvo a do Minho. Não usamos o poder da região, mas o da cidadania. As pessoas querem que contestemos todos os transvases, querem que contestemos todas as cedências de direitos, as compras e vendas privadas, querem que sejam dadas prioridades aos jovens e aos agricultores prioritários no consumo de água. Tudo isso fazemos. Somos pequenos, temos menos poder que outras regiões, estamos conscientes que o poder central, por vezes, nos evita, mas isso não quer dizer que não continuemos a tentar fazer esse trabalho em prol da população.

O Governo do Partido Popular fala de um Pacto Nacional da Água.

Em Espanha, jogamos muito com elucubrações teóricas e depois somos pouco práticos. Falamos de um Pacto Nacional de Educação, depois num pacto nacional de não sei quê e agora um Pacto Nacional da Água. Cada um aportará os seus objetivos. O conceito fundamental tem de ser o de cada um se habituar a viver com o que tem, se for assim, Castilla La Mancha está disposta a aceitar. Somos os únicos a dar uma quantidade enorme de água em troca de nada. Não podemos manter o Tejo na situação económica que está e continuar a cultivar, sabendo que a situação não é sustentável. 

A Greenpeace afirma que se deveria encerrar o transvase Tejo-Segura porque se pode gerir a bacia do Segura de modo a garantir em três anos as necessidades de água do Levante.

Isso parte da teoria dos aquíferos confinados na bacia do Segura. Paco Torreón [hidrogéologo da Confederação Hidrográfica do Segura] diz que existe uma série de aquíferos no subsolo bacia do Segura que representam uns possíveis 800 hectómetros cúbicos de água por ano. Não digo que os aquíferos não existam – haveria que fazer mais estudos – e se se trata de água fóssil ou renovável. Se for fóssil, uma vez retirada, acaba-se. Se for renovável, será uma solução. De qualquer forma, não é uma teoria cientificamente pacífica.

O Tejo tem pouca água, que quando chega a Madrid é contaminada pelo Jarama, o que estão a fazer para minorar esse impacto das águas sujas do Jarama no Tejo?

Madrid tem que exigir seriamente a todas as suas estações de tratamento de água que cumpram com objetivos ambientais claros, porque Madrid tem um impacto tremendo sobre o Tejo – 6,5 milhões de pessoas, muita indústria. Em Castilla La Mancha temos um programa de tratamento de águas em todas as povoações da comunidade. É fundamental que o ciclo da água se feche. Que se forneça água a uma população e, depois do consumo humano, esta volte a enviar-se para o rio em perfeitas condições. Se não o fizermos, o rio não sobreviverá.

Quanto vão investir?

Vamos investir quase 700 milhões de euros em Castilla La Mancha.

Se Madrid não investir, o vosso investimento não servirá para nada.

Temos de fazer o nosso trabalho.

É um investimento a quanto tempo?

Em 2022 tem de estar finalizado.