O rio que é o mesmo parece outro. Em Trillo, nem as chaminés da central nuclear, libertando vapor de água para a atmosfera, maculam a bucólica paisagem de bilhete postal de cores outonais. Na pequena vila, situada no final do Alto Tejo, princípio da Alcarria, as águas do Tejo avançam tranquilas e são as do pequeno Cifuentes, que a ele afluem, a causar todo o estardalhaço na sua cascata final. Os dois caudais de água límpida juntam-se em corrida prazenteira por mais alguns quilómetros.
Olhando para a viscosidade verde que passa por baixo da ponte romana de Talavera de la Reina, mais de 250 km a sudoeste de Trillo, podia jurar-se ser outro o rio. Aqui, o Tejo já não desvenda o que lhe vai no fundo e a sua corrente é como um Jabba the Hutt arrastando-se ao sol, se este fosse uma bacia hídrica e não um personagem ficcional da “Guerra das Estrelas”.
As águas quimicamente alteradas do Tejo mostram, nesse caudal verde pastoso de Talavera de la Reina, o sofrimento a que a gestão hídrica de Espanha submete o rio ao longo do seu curso e a que a seca sentida na península Ibérica (outubro foi o pior mês da história pluviosa de Espanha, depois de já se ter passado por uma primavera árida como não se via desde 1965) só acentua os contornos dramáticos.
“Quando o rio era rio, subia mais”, conta-nos Julio Olmedo que, com os seus 73 anos de idade e 64 de Talavera de la Reina, se lembra dos dias passados nos areais da praia fluvial. “Toda a Talavera se banhava aí, pescava-se e comia-se o peixe”, acrescenta. No mês passado, dezenas de milhares de pessoas marcharam pela cidade, sob o lema “Talavera, Por Su Futuro”, reivindicando medidas económicas e sociais em que se incluía o fim imediato dos transvases do Tejo e do seu afluente Alberche.
De acordo com um documento da Confederação Hidrográfica do Tejo (CHT), o organismo político que gere a bacia espanhola do rio comum, Talavera de la Reina “constitui um ponto crítico” por causa dos caudais médios muito baixos no verão e pelos “problemas na qualidade da água e a degradação de canais e ribeiras” – conclusões do documento que são desmentidas pelo seu próprio presidente, Juan Carlos de Cea, respondendo por email ao i: “Os parâmetros físico-químicos da qualidade da água estão de acordo com a normativa vigente e o seu acompanhamento é constante.” Juan Carlos de Cea garante até que “o Tejo não tem nenhum ponto crítico neste momento” e que aquilo que se vê “são apenas os efeitos próprios de uma importante seca meteorológica que não é exclusiva da bacia do Tejo, mas de toda a península Ibérica, incluindo Portugal”.
Contrariando aquilo que dizem especialistas, ambientalistas e até muitos político, e que a reportagem do i pôde constatar in loco ao longo de centenas de quilómetros do curso do rio, os problemas do Tejo não se resumem a Talavera de la Reina, terra deprimida por uma alta taxa de desemprego (31,3%, a maior de Castilla-La Mancha). Aqui atinge a máxima consequência a gestão política das suas águas, depois de o rio, de caudal deprimido pela seca e pelo transvase Tejo-Segura (já lá chegaremos, mas fixe o nome do grande ogre desta história), passar pela Comunidade de Madrid e receber as águas sujas do Jarama perto de Aranjuez.
À passagem por Toledo, a cidade histórica muralhada, ponto turístico importante de Espanha, já o Tejo escurecido carrega toda a água mal tratada de Madrid e que lhe vale o epíteto ouvido pelo i repetido por muitas bocas (e o “El País” já o usava como título há 30 anos num artigo sobre o rio, mostrando que a questão não é de agora): “esgoto”.
Problemas variáveis “A situação do Tejo é muito variável. A cabeceira do Tejo por um lado, o Tejo médio por outro e, por fim, o Tejo baixo e Portugal. A cabeceira do Tejo está em situação de emergência e praticamente sem água; o Tejo médio tem alguma água, mas muito contaminada; e pela ação do sistema de Gredos [serra no centro da península], a caminho de Portugal, o Tejo recupera, por um lado, a qualidade da água, porque tem mais capacidade de eluição, e por outro a quantidade”, explica o diretor-geral da Agência da Água de Castilla-La Mancha, Antonio Luengo.
Se Gredos ajuda a melhorar o verde viscoso e brilhante do caudal e demove as colónias de mosquitos de deixarem Talavera, parece incapaz de recuperar a qualidade da água, como têm protestado os ambientalistas portugueses. O Laboratório de Patologia de Animais Aquáticos do Instituto Português do Mar e da Atmosfera concluiu esta semana que a mortandade de peixes no Tejo junto a Vila Velha de Ródão foi causada por microalgas existentes na água devido à poluição. “As análises não enganam. Há contaminação”, disse Samuel Infante, da Quercus, à Lusa.
Para Julio Barea, da Greenpeace Espanha, a “irracionalidade com que se está a gerir a política hídrica espanhola” é a principal causadora da tensão a que é submetido o Tejo. A verdade é que, como diz Barea, Espanha é “o país com mais denúncias em matéria ambiental da União Europeia”.
Ainda no final de setembro, andava o governo espanhol a braços com a crise da Catalunha, e pela calada de uma sexta-feira à noite – e durante toda a madrugada até à manhã de sábado -, a CHT autorizou um transvase encapotado de água do Tejo para o Levante espanhol. Desde maio que não se autorizam transferências de água da cabeceira do Tejo para a bacia do Segura porque o nível das barragens (231 hectómetros cúbicos) está bem abaixo do limite estabelecido como mínimo (368 hectómetros cúbicos). E, mesmo assim, a água lá foi para os campos do sul.
O transvase foi denunciado como “ilegal” pelo coporta-voz da Plataforma em Defesa dos Rios Tejo e Alberche, Miguel Ángel Sánchez, e o executivo da Comunidade de Castilla-La Mancha ameaçou recorrer à justiça caso haja suspeitas de irregularidades.
Só que “o governo o que fez foi disfarçá–lo, chamando-lhe cessão de direitos”, conta ao i Francisco Pérez Torrecilla, presidente da Associação de Municípios Ribeirinhos, que engloba 22 autarquias das margens do Tejo. Emprestou-lhe um eufemismo, falou na transferência de direitos de agricultores de uma zona do Tejo para agricultores de Múrcia, e assim enviou água de barragens em estado de emergência, com apenas 9,3% da sua capacidade, para regar os campos do Levante.
E se o Estado justifica a medida dentro do marco legal da gestão do transvase, fazê-lo durante a noite do começo de um fim de semana mostra que no governo não estavam convencidos da bondade dessa medida. A decisão custou mesmo o cargo ao anterior presidente da CHT, Miguel Antolín que, segundo o site encastillalamancha.es, se recusou a autorizar esse transvase e foi substituído por Juan Carlos de Cea, o até então diretor técnico que, esse sim, aceitou a transferência da água da cabeceira do Tejo para o Segura.
“As reservas baixam cada vez mais, os hectómetros continuam a sair pelo coador do Tejo-Segura, o nível da água vai descendo e o pouco que se recolhe é das escassas chuvas que caem”, indigna-se Jorge Riendas, presidente da plataforma de intervenção cívica transformada em partido político Mas de Un Ciudadano. O que temos, explica, “é um Tejo que não faz jus ao seu próprio nome, que já nem é rio, é um ribeiro quando passa pela província de Guadalajara”.
A Mas de Un Ciudadano resolveu fazer alguma coisa para chamar a atenção para o problema. “Sobre o transvase Tejo-Segura, fizeram-se manifestações, declarações políticas. Umas mais contundentes, outras menos. Foi-se a Bruxelas. Mas, no fim, os transvases continuam e as nossas barragens estão como estão e as nossas povoações estão como estão”, diz Susana Martínez, vereadora eleita pela plataforma.
Junto com um conhecido humorista local, que assina como Homem Tardio, a Mas de Un Ciudadano criou uma paródia do “Thriller”, de Michael Jackson, chamada “Zombis del Tajo”, com um videoclipe filmado no leito seco do Tejo, como se fosse um cenário pós-apocalíptico, e uma letra em espanhol que denuncia todos aqueles que beneficiam do desvio das águas das barragens de Entrepeñas e Buendia para o Levante.
No plano hidrológico de 2016-2017 (que terminou a 30 de setembro), “chegaram à cabeceira do Tejo 309 hectómetros cúbicos de água; desses foram transvasados 144,5 hectómetros, ou seja, praticamente metade da água foi para Múrcia”, exemplifica ao i Antonio Luengo.
Restaurante que perdeu a vista Juan José Jiménez mostra-nos a paisagem através das janelas que rasgam a parede do restaurante Pino, em Sacedón. O pai abriu–o em 1961, pouco depois de construído o complexo de barragens de Entrepeñas e Buendia. Naquela altura, a água do Tejo entrava por baixo do edifício, assente nuns pilares. As fotos na parede lá estão para comprovar aquilo que agora é difícil de acreditar, vendo a paisagem.
A última vez que a água chegou até junto do restaurante foi em 1993. Desde aí, os níveis de Entrepeñas foram descendo até ao pouco que hoje tem. É difícil olhar à volta e imaginar a paisagem árida coberta de água. Para vislumbrar o Tejo é preciso esforço para reconhecer a sua passagem, ao fundo, mero risco entre dois pequenos cerros, a uns dois quilómetros do Passeio da Marinha Espanhola, por onde caminhamos.
Adivinha-se o que ali havia pela arquitetura, pelos muros construídos para evitar a subida das águas, pelo sinal que alerta para o problema do mexilhão-zebra, uma das 100 espécies invasoras mais prejudiciais do planeta, pela rampa por onde os carros desciam os atrelados para colocar ou retirar os barcos de recreio da barragem. Sacedón ainda tem cinco empresas náuticas e o segundo maior número de barcos registados a seguir a Madrid, mas sangra devagarinho com a falta de água.
Tempos houve em que 20 autocarros traziam todos os fins de semana turistas desde Madrid, que fica a pouco mais de hora e meia de caminho; e de Guadalajara, a cerca de uma hora. No verão vinha polícia da capital para orientar o trânsito porque a população crescia dos habituais dois mil habitantes para seis mil, o suficiente para manter nove bares e três discotecas.
Esse tempo já se foi. Há três semanas encerrou um bar de tapas. Lá está com os letreiros de “arrenda-se” nas janelas. Juan José Jiménez aguenta-se porque é o dono e não tem encargos com renda a pesar no deve e haver mensal. “Os que alugavam já fecharam todos”, garante. E ele não desiste, mas só não parte também por ser difícil encontrar comprador. “Hoje em dia não se consegue vender nada em Sacedón.” Em dez anos, a vila perdeu 20% da população.
Escrevia Camilo José Cela, no seu “Viaje al Alcarria”, que “Sacedón é uma povoação onde as pessoas se deitam tarde”, e no verão, quando aqui na serra o calor das casas convida ao fresco da noite, até pode confirmar-se. No entanto, as temperaturas negativas deste outono sem chuva desanimam as ruas e não se veem “nos bancos de pedra da praça e nas portas das casas” esses “grupos de gente a apanhar ar em silêncio” de que falava o escritor espanhol nesse livro de 1948.
O pai de Juan José Jiménez veio de Toledo atraído pelas águas. A cabeceira do Tejo prometia futuro e cumpriu-o até chegar o ogre. Os primeiros planos do transvase Tejo-Segura datam de 1932; porém, só em meados dos anos 1960 começaram as obras, que se completariam em 1979. Nesse ano transferiram-se as primeiras águas para o rio Segura, cuja bacia abastece as diferentes culturas de regadio no Levante espanhol.
“No princípio nem se percebia o efeito do transvase na barragem”, conta o dono do Pino. Só na grande seca de 1992 se percebeu que faltava água. No entanto, o inverno deu uma ajuda com a neve que trouxe, no degelo da primavera de 1993, caudal suficiente para a água banhar o restaurante e justificar as janelas panorâmicas por mais um verão.
Desde 2004, ano em que fizeram a estrada sobre o canal que liga Entrepeñas a Buendia, só por uma vez a água se abeirou da ponte, e a mesma dista uns bons 500 metros do restaurante. Jiménez lembra que do pontão próximo do Pino se mergulhava de cabeça porque a profundidade era de pelo menos três metros.
As alterações climáticas, a subida da temperatura, o aumento dos fenómenos climatéricos extremos, com longos períodos de seca, contribuem para reduzir o caudal do Tejo, que entra na Alcarria como um fio de água serpenteando pelo leito árido que antes era o seu. Se à falta de caudal juntarmos uma política de gestão hídrica que privilegia os sequiosos campos do Levante em detrimento dos municípios ribeirinhos, temos a receita que resultou na situação de emergência em que vivem atualmente as vilas das margens do Tejo.
“Há 38 anos que repartimos água, que somos solidários com o Levante, e já transvasámos entre sete a oito barragens cheias de Entrepeñas e Buendia, mais de 15 mil hectómetros cúbicos de água”, sublinha o presidente da Câmara de Sacedón.
“Já Basta!” Para onde se olhe em Sacedón encontra-se um cartaz, uma folha A4, um autocolante com a frase “Já basta! Não ao transvase.” É mais um grito surdo de indignação que um ato de resistência. O transvase não está para fechar, nem pouco mais ou menos. O que o governo de Mariano Rajoy contempla não é privilegiar a gestão hídrica segundo a diretiva-quadro europeia, preferindo a ideia mais mediática de estabelecer um Pacto Nacional da Água e de pensar em mais barragens e transvases.
Devido à política de Franco, a Espanha transformou-se no “país da Europa com o maior número de represas ou de barragens” e “continua a ser o país do mundo com maior número de barragens per capita”, explica Julio Barea. “É uma loucura, temos mais de 1300 grandes barragens e um número indeterminado de açudes. Temos todos os rios compartimentados e praticamente artificializados”, acrescenta o ambientalista, que fala em “irracionalidade” na gestão política das águas em Espanha. Até porque, mesmo com tantas barragens, represas, açudes e transvases, ainda a seca vai no adro e as reservas de água espanholas estão a 37%, e Entrepeñas e Buendia já se habituaram ao estado de emergência.
Buendia revela a lama do fundo e, com ela, mesas e cadeiras que, emergindo das águas da barragem, compõem agora um estranho enquadramento de design urbano à beira do espelho de água de mínima corrente. O Real Sítio de La Isabela e Baños de Sacedón, a estância termal construída no séc. xix na zona onde já antes a monarquia espanhola gostava de ir em busca de cura para alguns dos males que a afetavam, volta a ver a luz do sol e a atrair curiosos.
Na barragem de Bolarque, num cenário idílico de árvores coloridas de outono e o barulho do rio a correr, a enorme parede da represa ostenta o nome de quem inaugurou as obras em 1910, Afonso xiii, o bisavô de Filipe vi, o atual monarca espanhol. O transvase do Tejo para o rio Segura parte daqui, deste cenário quase harmonioso, de árvores a explodir de amarelo, pássaros a cantar e constante marulhar do rio. Só o horrendo edifício de onde se controla a elevação reversível de Altomira e os tubos que transportam a água montanha acima, desafiando a gravidade, destoam na paisagem deste vale estrangulado onde até o gigantesco paramento da barragem parece encaixado naturalmente.
É aqui que o ogre do Tejo, o transvase que lhe leva parte substancial do caudal para regar tomate nos desertos de Múrcia e Almeria, começa o seu percurso de 292 quilómetros para garantir aquilo que no sul passam o tempo a sublinhar: a água é de todos. “É curioso que o Levante tente convencer que a água é de todos e quem mais a usa são eles”, indigna-se Pérez Torrecilla. “Se o que se está a fazer é impedir que se cubram as necessidades de uma bacia para cobrir as necessidades de outra, isso não é água para todos” e é contrário à diretiva-quadro europeia, que explicitamente estabelece a preferência da bacia cedente sobre a bacia recetora.
“Os interesses políticos vão, não justamente, mas logicamente, para onde há mais votos”, reconhece o presidente da Associação de Municípios Ribeirinhos e, na balança da política, o peso do Levante agrícola e dos terratenentes (ou “águatenentes”, como lhes chama Antonio Luengo) supera em muito as nove mil almas ribeirinhas e o impacto ambiental no rio Tejo. A exigência dos agricultores do Levante pesa sempre muito mais na hora de o governo decidir sobre o caudal do rio.
“No Levante há uma opinião maioritária que defende que se lhes tem de transvasar água de qualquer rio”, diz o diretor das Águas de Castilla-La Mancha. E que vê o transvase Tejo-Segura como a maior das maravilhas da península, peça fundamental para desenvolver o modelo agrícola que “combina produção intensiva em estufas com sistemas de céu aberto” que permitiram a um território árido transformar-se na “horta da Europa”, uma frase que continua a soar bem nos corredores de Madrid.