No dia 29 de setembro, sexta-feira, desde as oito da noite, e até sábado de manhã, a Confederação Hidrográfica do Tejo (CHT), responsável política pela gestão do rio em Espanha, autorizou uma transferência de água da Cabeceira do Tejo para o Levante espanhol. Desde maio que não são permitidos transvases das barragens de Entrepeñas e Buendia porque, com apenas 9,3% da sua capacidade, estão abaixo do limite permitido por lei. Madrid não só autorizou, como tentou dissimulá-lo durante a madrugada de um fim de semana e, não o negando, deu-lhe outro nome: em vez de transvase, chamou-lhe cessão de direitos.
«O Governo, o que fez, foi disfarçá-lo, chamando-lhe cessão de direitos», diz ao SOL Francisco Pérez Torrecilla, presidente da Associação de Municípios Ribeirinhos da Cabeceira do Tejo. «Retiraram água das barragens de Entrepeñas e Buendia, que estão em estado de emergência, para a levar para outra bacia, a do Segura» e, depois, arranjaram «uma série de palavras técnicas para tentarem convencer os demais de que não foi um transvase» para os agricultores de regadio de Múrcia, no Levante.
Sinal de que a decisão causou mal-estar dentro do próprio Governo de Mariano Rajoy é que Miguel Antolín, o então presidente da CHT, se terá recusado a dar ordem para acionar a transferência através do transvase Tejo-Segura e foi demitido, de acordo com o jornal El Diario. Substituído no cargo por Juan Carlos de Cea que acabou por autorizar a transferência de água.
O mesmo Cea respondeu ao SOL por email dizendo que «o transvase Tejo-Segura tem atualmente umas regras de exploração claras, transparentes e objetivas». Garantindo que o mesmo está fechado desde maio, sublinha que, «desde então, todos os pedidos do rio Tejo abaixo das barragens da cabeceira são atendidos sem dificuldade, nem restrição e os caudais legais fixados em Aranjuez, Toledo e Talavera são cumpridos de forma muito ampla».
A ênfase no discurso legalista, do cumprimento escrupuloso do que manda a lei é uma característica do Governo espanhol no que diz respeito à gestão das águas. Tal como em relação ao transvase Tejo-Segura que «está neste momento blindado por diferentes leis reais e decretos» para que seja «intocável», explica ao SOL Julio Barea, responsável pelas campanhas de água da Greenpeace Espanha.
«O transvase Tejo-Segura tem que fechar. Já não só por uma questão ecológica, também por uma questão de justiça social», afirma Barea, só que o transvase é a galinha dos ovos de ouro dos produtores agrícolas do Levante espanhol, aposta do Governo de Madrid que gosta da forma como soa o termo «horta da Europa», comummente usado pelas regiões de Múrcia e Almeria. E é por causa desse transvase, principalmente em alturas de maior seca, que o Tejo chega à zona de Madrid sem força para enfrentar as águas sujas do Jarama, vindas dos esgotos tratados deficientemente pela comunidade de Madrid.
Conclusão, se, como diz o ministro do Ambiente português, João Pedro Matos Fernandes, Espanha cumpriu, com «pequeníssimas exceções», a Convenção de Albufeira, que determina o envio de 2700 hectómetros cúbicos de água do Tejo para Portugal, a qualidade do caudal que chega a este lado da fronteira deixa a desejar.
«Teoricamente, cumpre-se [a convenção], mas a realidade é que em Portugal o rio está a sofrer uma situação muito lamentável, pela atual descida do nível do caudal e pelas más condições da água que se está a transferir atualmente», conta o diretor da Agência da Água de Castilla La Mancha, Antonio Luengo.
O certo é que, a 24 de novembro, Matos Fernandes afirmava à Lusa que o Governo português estava interessado em discutir a «a gestão comum das águas», até porque a organização ambientalista Zero-Associação Sistema Terrestre Sustentável vem insistindo na necessidade de rever a convenção porque Madrid não tem cumprido com os caudais acordados. Algo que o Governo espanhol nega.
«Durante todo o verão, o rio Tejo levou muito mais água que a que levaria de forma natural num episódio de seca como este», sublinha o responsável da CHT. «Os caudais entrantes na cabeceira foram, normalmente, inferiores – às vezes, bastante inferiores – aos que se escoaram para cumprir os mínimos legais estabelecidos em Aranjuez, Toledo e Talavera», explica.
Depois da reunião no Porto com a sua homóloga espanhola, Isabel García Tejerina, Matos Fernandes não tocou no assunto da revisão da gestão dos rios, limitando-se a garantir que tudo está bem, apesar dos relatos de peixes mortos em Vila Velha de Ródão, contaminados por microalgas nas águas do Tejo.
«O Governo espanhol tem de ter abertura para negociar», só que acima de qualquer acordo com Portugal «está o seu pacto político», denominado Pacto Nacional para a Água. «Correu-lhe bem em Múrcia aqui há uns anos com o ‘água para todos’, uma campanha que mobilizou todos os partidos e que lhe deu muitos votos. E agora estão a tentar recuperar isso, que é um pouco uma versão a nível estatal da água para todos».
Juan Carlos de Cea diz que a convenção, que cumpre agora 20 anos, «é um bom convénio, que se tem vindo a aperfeiçoar de ano para ano e que é muitas vezes dado como exemplo a nível internacional». Não haverá, pois, razão para a rever. «Não obstante, a participação e o diálogo entre todas as administrações e todos os utilizadores em matéria de planificação permitirá conseguir soluções sólidas, consensuais e duradouras».
A verdade é que mesmo sendo Portugal parte interessada no rio a jusante, o seu peso na definição da política de água espanhola é limitado. Pérez Torrecilla refere que «acaba por se cumprir a Convenção de Albufeira, até porque não é muito exigente», mas só em quantidade. «Em qualidade não cumprimos e a Europa deu-nos outro puxão de orelhas pela qualidade das águas. É que não tratamos a água ou fazemo-lo muito mal», adianta o presidente dos municípios da Cabeceira do Tejo. «Portugal denunciou reiteradamente que não se cumpre bem o Convénio de Albufeira, sobretudo em relação ao Tejo», acrescenta Julio Barea.
O facto é que o Governo espanhol segue sem cumprir a Diretiva Quadro Europeia sobre a água e os grupos ecologistas espanhóis têm-no denunciado reiteradamente. «A Comissão de Meio Ambiente e a Comissão de Petições da UE devem ter uma enorme pilha de denúncias», diz Julio Barea. «Acho que Espanha é o país que mais denúncias tem em matéria ambiental», acrescenta.