Era professor de História e de Música quando em 1989 o desafiaram para escrever num suplemento de vinhos do semanário “OJornal”. Nessa altura “já levava cerca de 15 anos de andar à procura de vinhos velhos, fazia jantares em casa com amigos, ia comprar vinhos a lavradores no Ribatejo, engarrafava em casa, punha o meu rótulo, a minha etiqueta. A maluquice já lá estava”, resume. Autodidata, fez a sua aprendizagem lendo, viajando e bebendo, porque na altura ainda não havia cursos da especialidade. Redator da Revista de Vinhos e colunista do Expresso, João Paulo Martins é também o autor de “Vinhos de Portugal” (ed. Oficina do Livro), considerado por alguns “o mais respeitado guia de vinhos do país”.
Como se elabora um guia como o Vinhos de Portugal? Por onde é que se começa?
Tenho um método que fui criando ao longo dos anos e com o qual me dou relativamente bem. Faço este trabalho com o apoio das comissões vitivinícolas [associações que controlam e certificam o vinho de cada região], que recolhem as amostras dos produtores de cada uma das regiões e me facultam as instalações para fazer lá as provas. Combino com antecedência quando é que têm a sala livre e coordeno de forma a que a minha deslocação seja sequencial, de forma a não andar para trás e para a frente. Se fosse fazer em casa era impensável.
Porquê?
Levo os meus copos, mas toda a logística fica a cargo das comissões. Mesmo assim são dois meses e meio de provas. As regiões de Trás-os-Montes e Beira Interior consigo fazer num dia. De resto é tudo mais tempo. Este ano foram 12 dias de prova entre Douro e Porto.
Abre uma garrafa ou tem outra maneira de provar o vinho?
Abro a garrafa. O que quer dizer que sobra muita garrafa, não é?
É o que eu ia perguntar.
No caso dos vinhos normais, abro uma garrafa. Quando são coisas especiais, como vinhos de Porto muito antigos, há produtores que mandam uma garrafinha pequenina só com a quantidade necessária para eu provar, o que percebo. Para que é que vou abrir uma garrafa de centenas de euros se depois não consigo consumir?
E o que acontece às garrafas que ficam quase cheias?
Distribui-se pelas pessoas da comissão, para quem quiser levar para casa e beber à noite. O que sobra disso guardo para fazer vinagre. Tenho um amigo que é vinagreiro na Bairrada e ele vai lá buscar as garrafas. Só para ter uma ideia, quando estive a fazer provas no Porto ele foi lá buscar 600 garrafas e mais oito bidons de cinco litros.
E esse vinagre é especial ou é um vinagre corriqueiro?
É dos melhores vinagres que há no país, um vinagre natural, que demora dez anos a fazer. Eu próprio tenho já quatro barris em casa para fazer vinagre, de 50 litros – mas não estão cheios, porque tem de levar sempre uma camada grande de ar em cima para fazer o processo. Assim não se estragam os restos. Faz-me impressão estar a deitar tudo pelo cano, às vezes vinhos tão bons…
Não faz jantares com amigos?
Não há possibilidade de escoar, porque é muito concentrado. Há dias em que faço cem provas. O que é que faço a cem garrafas? Por mais amigos que tenha, bebem-se duas ou três. O meu método é esse. Passo nove dias no Porto, mais três para fazer o vinho do Porto, e no Alentejo foram seis dias, em duas tranches de três dias cada um. E aí é começar a provar às 8h30, 9 da manhã.
Não lhe custa beber vinho logo de manhã?
Não estou a beber. Estou a provar e a cuspir. Não bebo nada o dia todo.
Mas apetece-lhe provar vinho a essa hora?
Não. Mas é um assunto que dou de barato. É o que tenho de fazer, de que é que me valia pensar que me apetecia ficar na cama? Nem seria o caso, porque sou bastante madrugador.
Toma o pequeno-almoço antes?
Nunca provo em jejum. Toma-se o pequeno-almoço e começa-se a provar. É evidente que para fazer muitas provas num dia tem de se ter uma metodologia para não cansar demasiado a boca. Nesse dias que começo de manhã, provo primeiro brancos. no caso dos vinhos do Douro ou do Alentejo, faço o primeiro flight, como nós chamamos, de dez vinhos brancos, depois faço um intervalinho, provo mais 12 ou 15 tintos. Dois flights de brancos e dois de tintos. Isso da parte da manhã já dá 50 a 60 amostras. Depois da parte da tarde normalmente é um bocadinho mais lento. Nunca provo mais de 40 da parte da tarde porque a certa altura a pessoa começa a ficar cansada.
E já lhe sabe tudo ao mesmo?
Não. Começo é a ficar distraído da cabeça. E depois já não estou a pensar em vinhos, estou a pensar noutra coisa.
O seu guia tem saído quase todos os anos. As mudanças justificam uma nova edição?
Normalmente trabalho em cima do livro anterior. Interessa-me ver se o vinho mudou de perfil, se mudou de castas, se agora tem estágio em madeira e antes não tinha, se tem menos tanino e mais não sei quê. Essas modificações é o que me interessa avaliar. Depois parto de uma base – por exemplo 15 valores – e vejo se o vinho mercê mais ou merece menos.
Os vinhos mudam muito de ano para ano?
Depende. Nas gamas de entrada não. Há vinhos que quase não precisava de provar, porque são sempre iguais. Aqueles vinhos que se fazem um milhão de garrafas – estou-me a lembrar do Planalto. É sempre igual.
Não há anos melhores ou piores?
Não, e se houvesse eles arranjavam maneira de igualizar. Se o vinho deste ano tivesse saído muito ácido eles arranjavam um truque, se tivesse saído pouco ácido arranjavam outro truque. É uma categoria que está estabilizada, tem os seus clientes e é aquilo que querem provar.
Mas a pessoa pode reagir ao mesmo vinho de maneira diferente, consoante a circunstância, não é?
Pode, principalmente porque bebemos o vinho com a comida. E o comportamento dos vinhos modifica-se em função da comida que lhes estamos a associar. Uma má associação pode sugerir que o vinho é menos bom do que é na realidade. A margem de associação é ampla, mas há erros que custam um bocadinho caro.
Porque há aromas que não casam bem?
Uma vez no Brasil, num restaurante todo à maneira, serviram-me corações de alcachofra com vinho tinto. A combinação da alcachofra com o vinho encortiçou-me de tal maneira a boca – foi uma coisa tão desagradável, tão desagradável – que eu ia vomitando. Foi a coisa que mais me arrepiou. Mas em geral a associação é uma coisa que se faz instintivamente. Escolho vinho para o prato em função de como foi feito – normalmente até fui eu que fiz, portanto é mais fácil.
Também gosta de cozinhar?
Gosto, gosto. Cozinho praticamente todos os dias.
Coisas requintadas?
No dia-a-dia não tenho tempo, mas às vezes gosto de fazer coisas mais requintadas. Sei fazer todos os pratos habituais da nossa culinária. Sou mais de tacho e forno do que de sobremesas. Cozinho muito peixe – costumo dizer que é um crime de lesa-pátria não comer peixe.
Há um artigo famoso da New Yorker, com o título A Really Big Lunch, sobre um almoço com trinta e tal pratos, regado com grandes vinhos, com o Gerard Depardieu e outras figuras conhecidas do meio. Também já participou em grandes farras dessas?
Muitas vezes, umas por razões profissionais, outras por razões de amizade. Às vezes sou convidado para jornadas dessas, coisas homéricas, que demoram não sei quantas horas. Por causa da minha profissão muitas vezes sou convidado para apresentações de vinhos em restaurantes Michelin, quer aqui quer no estrangeiro.
E há alguma refeição memorável que coloque num patamar acima das outras?
Ir a um restaurante duas ou três estrelas Michelin é sempre uma experiência. A pessoa percebe que nunca comeu aquilo, não imagina como se faz, jamais poderá tentar reproduzir em casa, são experiências gastronómicas, mais do que refeições. Se me perguntar: ‘Preferes ir a um três estrelas Michelin ou comer um cozido à portuguesa?’. É uma pergunta estúpida, porque as duas coisas não são compatíveis. Os restaurantes Michelin são sítios a que a pessoa vai uma vez por ano, ou uma vez na vida. Seria uma chatice comer aquilo todos os dias, mas também não vou dizer ‘Quem me tira os carapauzinhos fritos tira-me tudo’. Não entro nesse tipo de discussão. É evidente que gosto de carapauzinhos fritos, mas isso faço em casa. Já que vou pagar um balúrdio, ao menos que coma alguma coisa que não sei fazer, ou que nunca comi, ou que seja uma surpresa. Estive outro dia com uma pessoa que esteve no Mónaco e foi ao restaurante Louis XV, do Alain Ducasse, três estrelas Michelin. Eram dois casais e pagaram dois mil euros. Dói um bocadinho – a uns mais do que a outros. Ao Cristiano Ronaldo não deve doer nada, a nós, simples mortais, custa pensar nisso. Mas não indo tão longe, aqui em Portugal se nos cobrarem cem euros ou 150 por uma refeição a gente já acha caríssimo, tem de ser uma coisa que justifique, se não quer dizer que fomos roubados. Não vou comer carne à jardineira num sítio desses.
E com bons vinhos ainda fica mais caro…
Normalmente esses restaurantes têm escanções e sommeliers que sabem o que estão a fazer. A gente percebe que houve ali trabalho de casa, muitas horinhas a experimentar vinhos a ver qual era o vinho que ligava com aquele prato. E quando eles acertam a pessoa fica completamente embasbacada. Aconteceu comigo. Deram-me a provar o branco e eu pensei: ‘Valha-me Deus, vou ter de beber esta porcaria que não queria isto nem dado’ e depois quando veio o prato e provei o vinho nem queria acreditar. A diferença era brutal.
Falávamos de refeições memoráveis. Consegue concretizar?
As mais memoráveis às vezes nem são nesses restaurantes que têm mais estrelas. Ou é pelo vinho que se bebeu, ou pela companhia que se teve… Em fim de outubro tive uma refeição em que éramos só quatro pessoas. Um amigo trouxe dois tintos e um branco e eu levei um vinho da Madeira. Só os dois tintos e o branco que ele trouxe valiam 3500 euros. O meu não, era uma meia garrafa que custa menos de cem euros. Foi uma refeição fantástica, daquelas em que a gente sente que está a beber vinhos completamente únicos, que haveria pessoas no mundo a torcerem-se todas para estarem ali connosco.
Tal como há refeições memoráveis também há vinhos memoráveis? Consegue lembrar-se do sabor de um vinho?
Mais ou menos. Os vinhos generosos – vinhos do Porto antigos, vinhos da Madeira, moscatéis velhos – são os vinhos que acabam por ficar mais na memória. Já bebi vinho da Madeira do século XVIII, já bebi outros de 1812, vinhos do Porto de 1804…
Não se estragam?
Não, e os vinhos da Madeira ainda menos do que os do Porto.
Porque têm mais açúcar?
Porque têm mais acidez e essa acidez conserva o vinho, até ver, eternamente.
O vinho está igual ou diferente do que era há cem anos?
Como é que quer que eu saiba? Pela prova, está cheio de saúde. E acho que ainda não é nos próximos cem anos que aquele vinho vai morrer. A caramelização dos açúcares e a acidez mantêm os vinhos num patamar de qualidade durante décadas e décadas.
E vão refinando?
Vão. Pela cor, pelo sabor, percebe-se que o vinho é antigo. Até se pode tentar mandar um palpite sobre a idade, mas se estamos a falar do século XIX, tanto podemos dizer que é de 1840 ou 1890 que não acertamos. É completamente um tiro no escuro. Já em vinhos do Porto consegue-se ir por aproximação. Mas é um jogo que apenas tem interesse porque alimenta a nossa base de dados mental. Não é para artistas de circo.
Há pessoas que o desafiam a dizer de que ano é um vinho?
Faço isso entre os amigos. Toda a gente quer provar às cegas e toda a gente sabe que provavelmente vai dizer disparates, mas não está nada preocupado com isso. E às vezes acerta-se mesmo. Já me aconteceu. Já tive momentos de glória, alguns deles em público – foram bestiais porque isso dá uma fama desgraçada.
Há tempos entrei numa perfumaria e percebi que o cheiro dos perfumes ‘envelhece’, um perfume da década de 80 na altura parecia bestial e hoje parece antiquado, embora o cheiro seja exatamente o mesmo. Também acontece o mesmo com os vinhos?
Também. No tempo dos meus pais, nas décadas de 60 e 70, o conceito de bom vinho era o vinho velho. Mesmo nos restaurantes, quanto mais antigo fosse o vinho mais caro era. Houve restaurantes que entraram nessa loucura de comprar grandes quantidades para envelhecer e hoje têm as caves cheias desses vinhos e ninguém os quer beber.
Por causa dessa mudança no gosto?
Mudou o paradigma. A mudança do paradigma tem a ver com a melhoria técnica dos vinhos, a forma como eles são feitos. Hoje são feitos para serem bebidos novos e antigamente eram feitos para serem bebidos velhos. Como é que se faz um vinho para ser bebido velho? No caso dos tintos, deixar o vinho para ser muito agressivo, taninos muito vigorosos, e muita acidez. Essa rigidez inicial vai precisar de muitos anos para amaciar. Nos anos 60 era muito habitual os topos de gama tintos ficarem oito a dez anos em tonéis enormes antes de engarrafar.
É o que se chama estagiar?
Sim, ficava ali até considerarem que estava mais ou menos bom para engarrafar. Hoje ninguém faz isso. As pessoas habituaram-se a aromas mais jovens – mais fruta, mais madeira nova, uma estrutura mais polida – depois quem é que os mete a gostar de vinhos velhos? Não se consegue. As pessoas habituaram-se a vinhos muito agradáveis de beber, muito fáceis, uma pessoa apaixona-se por aquilo num instante. O vinho velho é um vinho sempre um bocadinho mais decadente, mais cansado, com aromas oxidados. Muitas vezes nem se percebe bem com que é que se vai conseguir beber aquilo em termos de comida, portanto decaiu muito o gosto pelos vinhos velhos.
E no seu caso?
Até tenho feito workshops e provas para ver se as pessoas adquirem o gosto pelos vinhos velhos, mas é uma causa perdida, já não se vai voltar atrás. Vamos continuar a fazer vinhos agradáveis de beber mesmo em novos e que vão envelhecer bem. Um tinto que não aguente vinte anos a evoluir bem não é um grande vinho. E os vinhos que eram bons bebidos em novos estão a evoluir muito bem. Às vezes nem são reservas, são vinhos correntes.
Estão melhor do que em novos?
Estão diferentes. Era bom na altura como vinho novo e agora é bom como vinho velho. Não tem que ser mau na altura e agora, depois de envelhecer, é bom. Isso era o modelo antigo. Aqui há um ano e tal bebi um branco de 1953 de umas caves da Bairrada. Devia ser completamente imbebível quando foi posto na garrafa, mas quando o bebi estava um vinho extraordinário, em qualquer lado do mundo. E outro dia levei uma garrafa da minha coleção particular para uma prova, um vinho de uma região do norte da Bairrada, de 1945. Era daqueles de a pessoa ficar de joelhos a beber, aos golinhos pequeninos, para durar muito tempo. Uma coisa espetacular, sem comentários. É inenarrável. Estavam lá pessoas com muita experiência de provas internacionais que diziam: ‘É uma pena o mundo não saber que isso existe’.
Guarda garrafas especiais para beber em ocasiões especiais?
Sempre tive aquele princípio de que os vinhos foram feitos para ser bebidos, não é para a gente olhar para eles. Algum dia tem de chegar o momento de a gente os beber. Algumas pessoas dizem: ‘Isto está à espera do momento especial’ e morremos todos antes do momento especial chegar. Há dez anos ofereci a um sobrinho meu, de presente de casamento, uma garrafa de Barca Velha. Mas o anormal – eu gosto muito dele, mas não tem outro nome – ainda não o abriu! ‘Ó tio, é para um momento especial’. Quando for beber vai ter uma desilusão bestial, que é o que acontece muitas vezes quando as pessoas bebem Barca Velha muito antigo. ‘Isto é que é Barca Velha?’. Estiveram 30 anos à espera de o beber! O vinho morreu.
Em casa dos meus pais há uma garrafa dessas…
Então diga aos seus pais que não vale a pena estar a guardar mais tempo. Tem é de ser decantado com jeitinho. A garrafa tem de ser posta em pé, depois agarra-se num jarro, e deita-se devagarinho a ver o vinho a cair. Quando aparecer algum depósito é parar. Tem-se um vinho limpo e agradável.
É certo que nas provas não se bebe. Mas, além do sabor, o bem-estar, a alegria que o vinho proporciona, não é um fator essencial?
Isso não é possível nas provas porque a gente não bebe nada. Até Barca Velha cuspo, portanto já está a ver. A sensação de bem-estar, de prazer, só se tem quando depois das provas se agarra numa garrafa boa e se vai jantar e leva a garrafa. A gente pode ter essa sensação de que o vinho é saboroso, mas essa história do prazer é à mesa e como não bebo vinho fora das refeições…
Tem alguma garrafa na sua garrafeira pessoal que seja o santo graal dos vinhos?
É melhor não dizer, se não depois vão querer que beba com eles. Daquelas mais famosas do mundo… De vinho do Porto tenho algumas – que me ofereceram ou que comprei em leilão. Vinho da Madeira também tenho uma que acho que é o santo graal do vinho da Madeira, é um Bual 1920 da Blandy’s. Essa estou à espera do momento para a beber. Em 2020, quando fizer cem anos, vão lançar de novo e vai custar uma fortuna. E muito bem. Quanto mais caro, mais justiça estamos a fazer ao produto. Custa-nos mais um bocadinho mas é assim que as coisas têm de ser, porque não elevamos a fama do nosso país se só vendermos vinhos baratos. Os outros países não foi assim que ganharam fama. Temos de ter vinhos caros para que a nossa viticultura seja credível.
E para alimentar o glamour em torno das marcas?
Claro. Embora as grandes superfícies estejam sempre a puxar os preços para baixo, fico muito satisfeito quando vejo um produtor que este ano vende a seis euros e para o ano já está a vender a 7,5 e no ano seguinte vende a nove. É bom sinal. Essa subida de preços corresponde a um reconhecimento daquela marca, é porque o vinho tem qualidade. Não se pode é começar a vender a cem se não for conhecido, porque aí é um flop. Tem de ter vários vinhos, uns para vender a três e outros para vender a 30. Além desses vinhos da Madeira e do Porto tenho um ou outro vinho estrangeiro, que quase sempre me ofereceram. Mas tenho muito vinho, tenho vinho demais. Os meus filhos é que se vão fartar de rir. Não tenho capacidade de consumo que dê cabo da minha garrafeira. Por isso é quando vou a almoços e jantares, peço sempre: ‘Por favor, deixem-me ser eu a fornecer os vinhos para a refeição’. Os natais de família, festas de anos, tudo. Quantas garrafas é preciso? Vinte? Sim, senhor. Preferes trinta? Pode ser trinta.
É a única maneira de escoar?
Não escoa nada! Aquilo continua a crescer. Mas é uma forma de não deixar crescer tanto.
O vinho é uma paixão cara?
Se a pessoa entrar na loucura de comprar coisas muito famosas, pode ser cara. Para mim não, porque compro pouco vinho. Compro algum vinho estrangeiro, para ver os padrões, onde é que a gente se situa, compro algum champanhe, não muito. Não sou exemplo, mas conheço pessoas que gastam muito dinheiro em vinho. Querem provar aquilo que é considerado muito bom em termos internacionais. Este vinho vale mil euros a garrafa?
Se calhar não vale…
Não se pode colocar a questão nesses termos. É sempre a lei da oferta e da procura. Há muita gente para comprar e pouco vinho para vender. E falo em mil euros porque estou a fazer a coisa por baixo. Há vinhos tintos que custam cinco mil euros. E mais. Você bebe aquilo e diz ‘já posso morrer, já bebi o melhor vinho do mundo’? Não. Mas a pessoa tem essa sensação de exclusividade. E isso tem um preço. A qualidade dos vinhos não se pode ver pelo preço que foi pago pelas uvas. Da mesma forma que você vê um quadro com meia dúzia de traços do Picasso. Vamos avaliar pela tinta que ele gastou a fazer quadro? Não, você paga é a assinatura que ele pôs lá em baixo. Se não estiver assinado, não vale nada.
Às vezes é a marca que vale esse dinheiro?
Não é às vezes, é sempre. Porque esses vinhos, em prova cega, são mal classificados. Estou a pensar nos grandes vinhos da Borgonha – são vinhos ligeiros, de corpo parecem ‘palhete’. Ao pé de um vinho cheio, numa prova cega, fica mal classificado. Isso quer dizer que o vinho não presta? Não. Mesmo que você publique os resultados – ‘este vinho ficou em último lugar na prova’ – quem gosta daquele vinho está-se nas tintas para a classificação.
Tive um amigo que dizia que às vezes é preciso beber maus vinhos para apreciar devidamente os bons. Partilha dessa opinião?
Sabe que não é fácil, porque agora os vinhos baratos são bons. Aquele conceito de mau vinho que havia quando eu era mais jovem, que a gente dizia ‘esta porcaria é imbebível’, praticamente já não há. Mesmo os vinhos de dois euros a garrafa, ou dois euros e meio, têm a qualidade mínima. Bebe-se à refeição sem problema. Mesmo nessa gama baixa, baixa, baixa, que agora se chama entrada de gama, já não há maus vinhos. O conceito do vinho da tasca, do garrafão, esse mundo morreu.
Como vai ser o vinho deste ano?
Vai ser bom. As uvas foram muito precoces, muita gente fez as vindimas em agosto, quando costumava fazer em setembro. Vamos ter algumas coisas boas, até vinhos do Porto. Há é menos quantidade, nalgumas zonas baixou muito a produção.
Isso vai encarecer o vinho?
Talvez, vamos ver.
Hoje quando olhamos para os rótulos, falam em amoras silvestres, em flores, baunilha… Dá ideia de que se criou uma linguagem à volta do vinho e mesmo quem não percebe nada do assunto às vezes faz um brilharete a falar dessa maneira…
Ainda por cima com a possibilidade de, mesmo que estejam a dizer disparates, se um cheira e o outro não cheira, é porque não tem nariz! Isso é verdade, e cria a ilusão de que o vinho pode cheirar às coisas mais disparatadas…
A tudo menos a vinho, se calhar!
Cheiro a vinho também não sei o que é… Mas isso que referiu tem uma explicação técnica. No tempo dos nossos pais, a tecnologia de fabrico dos vinhos era muito rudimentar. As fermentações faziam-se a uma temperatura muito elevada e os aromas iam-se embora. Hoje, fazendo as fermentações a uma temperatura mais baixa, consegue-se que os aromas fiquem nos vinhos. Antigamente a perceção da qualidade era pelo teor alcoólico – quanto mais álcool melhor, e por esse estilo mais taninoso, rascante, a que a gente chamava os vinhos carrascões. A perceção da qualidade não se fazia pelo aroma. Com esta nova tecnologia, que vem sobretudo a partir dos anos 70, descobriu-se um bocado um mundo novo. Os vinhos passaram a ser apreciados tanto pelo aroma como pelo sabor. Agora, isto permite toda a margem de delírio que se possa imaginar.
Há um lado exibicionista?
Também. Embora às vezes em público têm mais reticências em armarem-se em cowboys porque podem fazer má figura. Arriscam-se a dizer que ‘cheira a framboesas que levaram molho não sei quantos’ e o técnico que está lá diz ‘isso cheira é a rolha’. Acho que temos de ter alguma benevolência em relação a essas coisas.
O que é preciso para detetar essas nuances?
Prática.
E não precisa de ter um olfato bem apurado?
[Com ironia] É preciso ter o nariz desentupido. Não acho que tenha um nariz melhor que os outros, mas já cheirei tantas vezes que os aromas ficam na memória. Para as virtudes e para os defeitos. É preciso provar com muito frequência para a pessoa se habituar – e saber provar, não é enfiar o nariz dentro do copo de qualquer maneira.