Raríssimas – a Mata Hari do social

Eu estava pregada à TVI a ver a entrevista de Ana Leal ao secretário de Estado da Saúde Manuel Delgado quando, a terminar, passa a imagem da presidente da Raríssimas, Paula Brito e Costa, abraçada ao governante na praia, no Rio de Janeiro, Brasil.

Era uma cena de telenovela, porque de novela tem tudo e não só o cenário brasileiro: a emoção que nos despertam as crianças deficientes, uma mulher de origem humilde que faz uma instituição a partir do nada. Mulher apadrinhada por presidentes e reis, movida por ambição desmedida que alegadamente não hesita trocar favores sexuais por financiamento da instituição que lhe permita viver com um bom nível de vida, a ela e à família. Desviando dinheiro, se preciso fosse. 

Ia ser o assunto de telejornais, a conversa do povo no trabalho, nos transportes, nos supermercados e nos cafés. E a natureza íntima da relação dos dois, casados com outras pessoas, não só não ia ficar de fora como seria o ponto mais picante do caso.

O povo chamar-lhes-ia ‘amantes’ e assim seriam chamados na imprensa dita ‘tabloide’, mas como reagiria a imprensa dita ‘séria’ e a classe política? Atenção que eu coloco aspas porque tenho dúvidas sobre esta classificação da imprensa.

Esta questão coloca-se muitas vezes. Argumenta-se com razão de que há uma esfera da vida privada que deve ser protegida: as pessoas têm direito à sua vida privada, mesmo quando exercem funções públicas. Todavia, entende-se que as pessoas que escolhem exercer funções públicas têm menor proteção porque do outro lado está o direito de os media desempenharem a sua missão.

Quem decide exercer funções públicas sabe que vai ser muito mais escrutinado do que se quisesse ser (apenas) o contabilista do bairro – mas avança na mesma, por perspetivar outro tipo de ganhos (económicos, sociais, de carreira, de notoriedade ou simples vaidade).

Acresce que hoje em dia as pessoas publicam muita coisa da sua vida nas redes sociais. Antigamente, só tinha acesso a fotos pessoais o próprio, quem as tirava e pouco mais. Agora não é assim. Milhares, milhões, veem as nossas fotos, deixaram de ser ‘nossas’, são do mundo… e isto tem implicações na proteção da vida privada, que o é cada vez menos por decisão nossa.

E isto é assim normalmente, quando nem sequer há no horizonte nada a apontar para escândalo ou crime.
Quando a relação entre financiados e financiadores, entre instituições e prestadores de serviços, parece ser uma triangulação do género ‘assegura-me o financiamento público que a seguir eu pago-te uma bela avença enquanto me pões o protetor solar no Brasil’, é óbvio que a natureza da relação é relevante.

Isto não deveria ser tema? Talvez. Mas já é tema, pelo menos, desde que a Mata-Hari acabou fuzilada por causa daquele pormenor de andar a traficar segredos de Estado na sua alcova privada. 

sofiarocha@sol.pt