Isabel Olid Báez de seu nome, assina Bel Olid. É escritora, tradutora, feminista, independentista, professora universitária e presidente da Associació d’Escriptors en Llengua Catalana. A obra literária de Bel Olid conta com 13 livros. O último é um kit de sobrevivência de mulheres contra o machismo. Considera-se, nesta como noutras matérias, “moderadamente radical”. Acha que na maioria das lutas de afirmação de uma identidade oprimida, seja a de mulher ou a de catalã, “o problema é que a maioria dos privilegiados não percebem que têm privilégios que não deviam e continuam a resistir a perdê-los”. Apresenta-se às eleições nas listas da CUP.
Nos versículos 1 a 9 do capítulo 11 do Génesis, na Bíblia, há uma parte em que se fala da construção da Torre de Babel. A torre que é construída é tão alta que ameaça o poder do céu, e a forma como Deus lida com esse ato de soberba humana é derrubar a torre e dividir os humanos sobreviventes em vários grupos e com muitas línguas diferentes. A divisão das pessoas por nações é uma coisa boa ou má?
Não sei. Depende. Todos nós gostamos de nos sentir cidadãos do mundo e parte da humanidade, mas depois também percebemos que é importante preservar a variedade das culturas com um elemento fundamental da riqueza da humanidade. Para mim, como tradutora, a lenda da Torre de Babel e a existência da pedra de Roseta são muito importantes. Para nós, é uma sorte que a queda da Torre desse em tantas línguas, porque cada uma delas é como se fosse um universo novo a partir do qual podemos ver o mundo. Para os tradutores e escritores, haver muitas formas e perspetivas de ver as coisas é uma riqueza que se deve preservar. Na minha opinião, a questão que se joga aqui, na Catalunha, não é tanto uma questão de línguas e de nações, mas a afirmação do respeito pelas pessoas. É a necessidade de reivindicarmos o direito de decidirmos o que somos sem necessidade de pisar ninguém. O limite daquilo que eu sou deve ser respeitado até ao limite daquilo que é o outro. A inexistência de opressões garante que todos possamos conviver mais pacificamente.
É bom manter essa diversidade cultural e linguística, mas as divisões entre nações não podem funcionar com uma espécie de biombo que esconde os verdadeiros problemas e as opressões mais graves?
Creio que se sobrepõem. Por exemplo, ninguém duvida que seja português. Não é algo que necessite de reivindicar. Toda a gente assume que, se no seu passaporte está “português”, é porque é isso. Ninguém coloca em questão a sua identidade nacional nem a sua singularidade cultural. Eu, como catalã, isso é colocado em questão. E como duvidam dessa minha identidade, eu necessito de a reivindicar, porque essa identidade está sempre colocada em dúvida. Ao contrário de um heterossexual, que não tem nada a reivindicar – não há o dia do heterossexual, porque essas pessoas gozam de todos os privilégios e não têm de reivindicar a sua identidade. Pelo contrário, as pessoas que não são heterossexuais têm de reivindicar e de ter espaços de luta própria para terem uma identidade que sistematicamente lhes é negada no espaço público, no discurso e até nas representações da ficção. Na medida em que não existam esses problemas em relação às identidades cruzadas que nos constituem, isso é fantástico e não temos de reivindicar nada. No momento em que se transgride esta ordem da chamada “normalidade” é quando é preciso reivindicar. Ligando essa questão à questão nacional catalã, o que se foi passando por aqui é que é mais difícil ser catalão, ou, colocando melhor: é cada vez mais complicado ser catalão e espanhol ao mesmo tempo. Durante muito tempo pensámos que isso era possível, mas foi-se tornando cada vez mais difícil, com ministros da Educação espanhóis que afirmam ser necessário “espanholizar” as crianças catalãs porque somos demasiado catalães. Como se, no caso de a Catalunha fazer parte de Espanha, a nossa identidade catalã não fosse parte do todo e o enriquecesse, não fosse algo a estimar. As identidades nacionais que não são hegemónicas em Espanha, como a basca, catalã e galega, sobretudo, são vistas como coisas para exterminar e liquidar, e não como algo que orgulha, enriquece e deve ser protegido. Há castelhanos que não têm orgulho de que no seu país haja outras culturas, se falem outras línguas e inclusive haja outras nações históricas. É algo que querem exterminar, e não valorizar. Querem impor a “espanholidade” a todas as pessoas. Esta imposição à força foi o que nos obrigou a afirmar a nossa identidade de catalães e nos fez dizer: queremos mudar estas regras de jogo. Estas leis não nos servem para sermos nós mesmos.
Há esta leitura do processo que sublinha a necessidade de rejeitar uma opressão e afirmar a autodeterminação de uma comunidade, mas também há um outro lado, um nacionalismo que exclui o outro. Como o nacionalismo original basco de Sabino Arana que reivindicava uma “raça basca” em oposição aos “metecos” impuros. Dizia ele: “Se os metecos começassem a falar o euskera (língua basca), o melhor era falar russo, para que os impuros não nos compreendessem.” Muitas vezes argumenta-se que os catalães usam como argumento, para a sua independência, que a Espanha os rouba, que as regiões mais pobres ficam com o dinheiro dos catalães.
Aqui há dois aspetos distintos: a língua catalã, ao contrário do basco, é mais transparente por ser uma língua românica. Tem de se querer não entender o catalão, se alguém vive aqui dois meses, para não o perceber. A língua não exclui ninguém. Pelo contrário, o catalão funciona como mecanismo de inclusão: a minha mãe é de Málaga e o meu pai é de Múrcia; eu nasci aqui, frequentei a escola na Catalunha em que havia imersão linguística [o ensino era dado em catalão, salvo a disciplina de Espanhol], tenho 40 anos e dou aulas na universidade em língua catalã, sou presidente da associação de escritores de língua catalã. Para mim, aprender a língua – porque em minha casa, obviamente, falava-se o castelhano – foi um mecanismo de inclusão e de empoderamento social: abriu-me as portas da universidade catalã e deu-me ferramentas novas, como escritora, para expressar as minhas inquietudes. Tentar que o catalão seja a língua comum, independentemente de se estudar o castelhano e da língua materna que as pessoas que vivem aqui possam ter, é uma ferramenta de inclusão. Sobre o argumento de que os independentistas defendem que Espanha nos rouba, é uma forma de nos diminuir, é um argumento colonial usado a partir de Madrid. Se olharmos para o mapa político de Espanha, no País Basco, na Catalunha e em parte da Galiza sempre votámos de forma diferente do resto da população. Aqui na Catalunha, sempre votámos maioritariamente em alguém que não está a governar a Espanha.
Não é bem assim. Havia a expressão de “hacer la puta y la ramoneta” para definir a capacidade da CiU catalã de fazer coligações com os diversos governos de Madrid…
(Risos) Isso é diferente. É um facto que depois de votarmos noutro sentido, havia negociações e acordos, mas no que os cidadãos votam não é isso. Aos governos do Estado espanhol sai-lhes muito barato explorar o argumento eleitoral do anti-catalanismo, porque os catalães não votam neles nem nunca votarão neles, por isso podem dizer o que disserem de nós para ganhar votos noutros sítios. Conseguem muitos votos alimentando um certo discurso do ódio e inventando coisas. A nós, catalães, o que nos indigna não é que nós, como região mais rica, sejamos solidários com regiões mais pobres no Estado espanhol. Gostaria até que a riqueza fosse mais bem redistribuída e que, em todo o lado, os mais ricos contribuíssem mais para ajudar os menos afortunados a sair da pobreza. O que nos indigna é que esse dinheiro não chegue lá, seja usado para os muitos fundos de corrupção, fique em Madrid, e que nós tenhamos, em compensação, as infraestruturas mais degradadas. Para mim é incompreensível que quando quero apanhar o comboio, eles tenham problemas, porque há cinco anos que não há investimentos nessa área na Catalunha. O problema é que damos mais dinheiro para o bolo comum, ele é mal utilizado, temos um país em que campeia a corrupção, e nós não recebemos a contrapartida justa em infraestruturas e serviços sociais que nos caberia. Somos até prejudicados por sermos “dissidentes” e não votarmos nunca nos partidos que mandam em Espanha. Chegamos ao cúmulo de que o programa do “corredor mediterrânico”, com financiamento europeu para ser corredor mediterrânico, é feito para passar por Madrid. Nós achamos que isso é um desvio. Não dão dinheiro da Europa para melhorar estações em Madrid, ele é dado para melhorar as estações de localidades junto ao Mediterrâneo mas, pelos vistos, desagua nos bolsos de Madrid. Enquanto não conseguires uma forma de autogoverno, não vais conseguir sair destes mecanismos injustos. Se esta democracia não serve para proteger as minorias, mas apenas para as explorar, há uma altura em que as pessoas dizem: basta! Vamos ser nós a decidir como administrar a nossa riqueza e vamos ser nós a arranjar a melhor forma de colaborar com os nossos companheiros espanhóis, que desta forma também não recebem os meios necessários ao seu desenvolvimento. Querer ser independente não quer dizer deixar de ser solidário: uma parte da Catalunha está construída por gente que veio de toda a Espanha. Todos nós, tendo vindo de onde viemos, somos hoje catalães. Na minha família, como a maior parte dos catalães, há parentes que vieram de outro lado: mais de 75% dos catalães têm um avô ou uma avó que vieram de outra parte de Espanha.
Não era possível mudar a Espanha na sua totalidade para que isso fosse possível, sem ter de a partir em novas nações?
Isso não depende de nós, mas do resto de Espanha. Nós já votámos, desde sempre, diferentemente para que isso aconteça. E não parece que isso vá mudar. Há pouco tempo, parecia que o PSOE ia por um outro caminho, e radicalizou-se e juntou-se, na prática, ao PP e aos Ciudadanos nas questões da Catalunha. Não só não parece que vai melhorar, como está a piorar: estão a aplicar-nos o artigo 155 da Constituição, que nos retira a nossa autonomia democrática. A primeira coisa que fez o governo espanhol, mesmo antes de aplicar o artigo 155, foi intervir nas finanças catalãs e cortar todo o dinheiro orçamentado para a promoção da cultura e da língua catalãs. Madrid dizia só querer cortar dinheiro para a organização do referendo. Mas, por exemplo, o meu último livro, “Feminisme de butxaca. Kit de supervivència”, não tem nada que ver com o referendo, como a grande maioria dos livros aqui publicados e das atividades de promoção da língua e da cultura. A primeira coisa que o governo de Rajoy fez foi cortar todos os apoios nessas áreas. Há anos que tentamos dialogar com as instituições culturais espanholas para que se encontre uma solução de valorizar as outras línguas de Espanha e a única resposta que temos é “calem-se”. Não é por acaso que em todos os prémios do Estado Espanhol só são premiados livros em castelhano. Para eles, nós não fazemos parte da cultura.