A cozinha do R. e da M. não tem portas. Não falamos ainda aqui da parte romântica de abrirem a sua casa para receber um grupo ávido de provadores de petiscos veganos. Neste caso, a questão é literal. A cozinha do R. e da M. não tem portas e a fina separação entre o fogão e a mesa de madeira criada de propósito para poderem ser sempre muitos à mesa é feita por caixas de fruta e livros onde se inspiram para, ao domingo, servirem um brunch a um grupo de dez pessoas.
Mantemos o anonimato a pedido da dupla para quem “a comida é que interessa, não nós” e, convenhamos, nestas coisas do marcar uma refeição meio às cegas, quanto maior a surpresa melhor. E a surpresa aqui começa mal abrimos a porta.
Depois de receber uma mensagem com a morada e a pedir que levemos “fome e boa disposição”, chegamos ao destino. Como somos bons a cumprir regras, às 11h30 em ponto estávamos à porta e sem pequeno-almoço tomado. É que as fotos de quem já teve a sorte de conseguir lugar neste brunch – sim, sorte, que no último as vagas esgotaram em duas horas – faziam antever que todo o espaço livre no estômago seria bem aproveitado.
As boas vindas são dadas pela M., enquanto o R. ultima o que ainda falta chegar a uma mesa já bem composta. Em grupo, casal ou numa experiência a solo, não tarda que os outros entusiastas toquem à campainha deste 4.º andar que deixa entrar o sol de inverno bem típico de uma Lisboa em dezembro. Assim que nos sentamos à mesa, já não há casais, grupos ou pessoas sozinhas. Há sim um grupo de dez pessoas ansiosas que alguém perca a vergonha e seja o primeiro a deitar a mão ao petisco.
A ideia A M. já tinha sido vegetariana duas vezes na adolescência. “Algo que a minha mãe nunca levou a sério e, de facto, não foi”, admite. Já o R. baseava a sua alimentação em carne, peixe, batatas, arroz e poucos vegetais. “Não comia leguminosas, frutos secos e vários legumes, coisas que agora estão na base da minha alimentação”, explica. Nem de tâmaras (dates, em inglês) gostava, algo que mudou radicalmente e que, a par da associação de serem dois na cozinha, deu mote ao nome que escolheram para o projeto: Kitchen Dates.
Apesar de agora a consciência animal e ambiental falar bem alto, a vontade de mudar surgiu quando o corpo pediu outro estímulo para ser melhor. “Eu corria e sentia que tinha que mudar algo na alimentação para melhorar a minha performance”, refere. Começaram por eliminar os alimentos processados, depois baniram a carne vermelha, mais tarde a branca e também o peixe. E foi já enquanto vegetarianos que viajaram para Bali onde, por acaso, estava a decorrer um festival vegano com palestras e atividades ligadas a esse estilo de vida. “Houve um momento que olhamos um para o outro e dissemos: ‘Isto vai mudar a sério, não vai?’.
E mudou. Em outubro do ano passado cortaram definitivamente com todos os produtos de origem animal e processados. Desde aí, além de uns quilos de gordura perdidos, o R. melhorou 12 minutos nos tempos em maratonas e os dois descobriram um verdadeiro gosto em cozinhar.
Ainda a viver em Amesterdão, começaram a organizar brunches em casa, contrariando a dificuldade dos holandeses em abrir a porta de casa a alguém que não seja família. “Talvez por isso recebíamos sobretudo estrangeiros e turistas”, lembram.
Já a viver em Portugal, concluíram que, apesar de abrirem restaurantes com opções veganas quase todos os meses em Lisboa, nem todos são cuidadosos na confeção dos pratos. Além disso, perceberam que fugir aos processados ainda é um longo caminho que Portugal tem a percorrer. “A primeira vez que tentei comprar pão num hipermercado cá percebi que não havia um com menos de dez ingredientes”, exclama M. É por isso que, para que o pão esteja no ponto no domingo do brunch, R., o padeiro de serviço, começa a alimentar o fermento ainda na quinta-feira.
A ementa Íamos já lançados a dizer que aqui é tudo feito em casa, mas esta dupla mudou-nos as voltas. “É tudo feito de raiz menos o iogurte”, explicam, ainda que já estejam em testes para que até esse item saia desta cozinha.
Mas já que começamos a levantar o véu, façamos as apresentações formais deste menu.
Ainda antes de nos sentarmos, na mesa já está distribuída a bebida de aveia, bolinhas de cacau e hortelã, tortilhas de grão, carpaccio de beterraba, maçã e rabanete, fruta desidratada, pesto de rama de cenoura, nutella vegana, um assado de feijão vermelho e quinoa, húmus, queijo de amêndoa, pão, iogurte, granola e manteiga de amêndoa.
Vamos intercalando o doce com o salgado, ao ritmo que o palato pede. “Se quiserem começar pela sobremesa também podem”, avisa R. Mas entretanto a M. começa a servir uma sopa de batata doce e laranja e decidimos guardar o melhor para o fim, até porque as fotos do Instagram e Facebook desta dupla são famosas pelos doces.
Falando neles, eis que chegam à mesa duas tartes geladas: uma de abóbora, especiarias e cacau e outra de coco, limão e pistáchio. “Costumam dizer que nos privamos de muita coisa. Eu acho é que abri o meu leque de opções”, garante R., a lembrar os tempos em que sempre que pensava no jantar, à ideia vinha-lhe o frango que, como protagonista, tinha arroz, batatas ou legumes a servir de acompanhamento. “Agora o meu prato nunca tem menos de quatro componentes e nenhum é mais importante do que o outro”, explica.
Ainda que não tenham como objetivo evangelizar, não há quem saia daqui a pensar que talvez fosse melhor para todos trocar, nem que seja de vez em quando, o leitão pelo tofu. “Preferimos que todos reduzam um pouco o consumo de carne do que uma pessoa a elimine completamente, até porque o impacto global é muito mais significativo”, referem.
E de repente, entre conversas, tartes geladas e chá quente, são seis da tarde. O grupo vai abandonando consoante as disponibilidades e, à mesa, ficamos nós, os anfitriões e duas surpresas. A “Gata” e a “Dona Alzira” são as duas gatas da casa, que, talvez por estarem habituadas à ração vegana, aproveitam qualquer momento de distração para assaltar o que resta dos pratos. Não as censuro.