Nos anos 80 e 90, mais de 75% do votos dos eleitores concentravam-se na Convergência e União (CiU), uma coligação regionalista, de centro-direita, dirigida por Jordi Pujol, e no Partido Socialista Catalão (PSC), com uma vincada identidade catalanista. Apesar da grande maioria da população se ver como catalã, na altura o desejo dos eleitores por um Estado catalão atingia apenas os 10%.
As ruas da cidade podem contar parte de um conflito. Quando passo pela cidade velha de Barcelona com o fotógrafo Jordi Borràs, ele mostra-me uma zona onde, depois dos Borbouns terem invadido Barcelona, obrigaram os seus habitantes a destruir as suas casas pedra à pedra, “para mostrar quem mandava”, diz Jordi. Em muitos aspetos da sociedade e história catalãs esse conflito esteve presente: quando a língua catalã era proibida, quando exibir a seynera, a bandeira catalã, era crime. E até nas pequenas grandes coisas, como quando o Futebol Club de Barcelona foi fundado em 1899, seguiu-se rapidamente, como resposta, a Sociedade Española de Futebol, em 1900, que oito anos depois passou a Clube Desportivo Español, ao qual o rei Afonso XII concedeu o qualificativo de «Real».
Depois da transição para a democracia, cristalizada na Constituição de 78, a reivindicação da independência da Catalunha começou a avolumar-se apenas décadas depois, sobretudo a partir dos cortes sociais e das políticas de austeridade, que tiveram a sua expressão máxima em 2012. Os cortes sociais foram tão duros, que o presidente da generalitat da altura, Artur Mas da CiU, e a presidente do parlamento, Núria Gispert, tiveram que chegar, no dia 15 de junho de 2011, de helicóptero à sessão legislativa, para evitar o cerco dos “indignados” concentrados frente ao edifício parlamentar. Artur Mas, que veio mais tarde a organizar a primeira consulta popular pela independência, protestou contra a situação: “É intolerável que os deputados para realizar as nossas funções tenham que o fazer por estes meios, devido à violência que se vive nas ruas com agressões a alguns deputados”, declarou ao “La Vanguardia”.
O crescimento do independentismo na Catalunha dá-se depois do pico da crise e dos cortes sociais – pressionados pelo governo de Madrid, mas assumidos pelo governo autonómico – com a conjugação de vários fatores que vão permitir a emergência de um sentimento nacional numa parte importante da população catalã. Entre julho de 2012 e novembro do mesmo ano, os catalães que querem um Estado independente passam de cerca de 25% para mais de 48%. Nesse recrudescimento ganha importância, retroativa, o chumbo de parte dos artigos do Estatuto da Catalunha –aprovado pelo parlamento catalão, alterado pelo parlamento espanhol e posteriormente referendado pelos catalães – pelo Tribunal Constitucional, em 2010, depois de uma campanha do PP, que recolheu milhões de assinaturas de espanhóis contra a nova lei para a Catalunha. O crescimento da identidade catalã não pode ser explicado sem essa pressão da identidade espanhola.
“O que se foi passando por aqui é que é mais difícil ser catalão, ou, colocando melhor: é cada vez mais complicado ser catalão e espanhol ao mesmo tempo. Durante muito tempo pensámos que isso era possível, mas foi-se tornando cada vez mais difícil, com ministros da Educação espanhóis que afirmam ser necessário ‘espanholizar’ as crianças catalãs porque somos demasiado catalães. Como se, no caso de a Catalunha fazer parte de Espanha, a nossa identidade catalã não fosse parte do todo e o enriquecesse, não fosse algo a estimar. As identidades nacionais que não são hegemónicas em Espanha, como a basca, catalã e galega, sobretudo, são vistas como coisas para exterminar e liquidar, e não como algo que orgulha, enriquece e deve ser protegido. Há castelhanos que não têm orgulho de que no seu país haja outras culturas, se falem outras línguas e inclusive haja outras nações”, declara a escritora Bel Olid, presidente da associação de escritores de língua catalã.
Em 30 de setembro de 2005, quando 89% dos deputados catalães aprovaram o novo Estatuto da Catalunha, o sentimento independentista, o número de catalães que desejam um Estado Nação catalão, atingia apenas cerca 20% dos eleitores. “Quando se aprovou o Estatuto, foi com uma tão grande maioria que até o Partido Popular, que votou contra, a certa altura quis ficar na fotografia com algumas pessoas que redigiram esse documento. Depois foi ao parlamento de Madrid, em que foi substancialmente alterado e, posteriormente, referendado na Catalunha. E chegou o momento em que o Partido Popular começou a recolher assinaturas em toda a Espanha contra o Estatuto. E isso provocou uma reação aqui, primeiro na rua. As pessoas sentem-se de alguma forma agredidas. E começam a sair, nas grandes manifestações do dia 11 de setembro [a diada, o dia da Catalunha], em que durante cinco anos seguidos vão à rua mais de um milhão de pessoas. Começam a ocupar a rua gente muito normal e civilizada, muitas pessoas que nunca tinham participado antes numa manifestação. Isso foi a transformação da rua”, diz ao i Lluís Falgàs, jornalista experiente na política local e correspondente da TVE no parlamento de Barcelona.
Foi nesse momento, que começou o chamado “Processo” catalão, de um lado, e do outro começaram a aparecer as organizações que iriam de alguma forma federar o espanholismo na Catalunha. O Processo e o nascimento do Ciudadanos são irmãos gémeos. O Processo começa com a evolução da área da CiU do regionalismo para o independentismo, como uma forma de não perderem o poder na crise social, transferindo parcialmente o foco do social para a questão nacional; ao mesmo tempo que a esquerda independentista, da ERC e da CUP, e os movimentos sociais, como a ANC e a Omnium Cultural, começam a construir um discurso e uma mobilização social em torno da ideia de autodeterminação para ter um Estado mais progressista, que não tenha o combate à injustiça social e às desigualdades chumbado por Madrid. Do outro lado da barricada, forma-se o Ciudadanos, que se erguem como o partido anti-catalanista por excelência. O seu discurso vai conquistando parte da população originária de outros lugares de Espanha, nomeadamente nos antigos feudos socialistas, o chamado cinturão vermelho de Barcelona.
A repressão ao referendo de 1 de outubro, com mais de 900 feridos, a imposição pelo governo de Madrid do artigo 155, que suspende a autonomia e a prisão dos dirigentes catalães extremam as posições entre a população da Catalunha e o governo de Madrid, mas também dividem profundamente a sociedade catalã. Se é verdade que 80% dos catalães defendem o direito a decidir em referendo o seu futuro, é também factual que no próximo dia 21 de dezembro haverá dois blocos, independentistas e espanholistas, separados por pouco mais de 5%.
A independência não será para amanhã, mas dificilmente a situação na Catalunha se pacificará. “Há muita gente que continua a acreditar no processo. Para se manter mobilizada é apenas conseguir um novo discurso e objetivos que o façam. É muito difícil fazer previsões. Pode-se dizer que uma fase do processo acabou. O que haverá depois? Não o sei. Há claramente um antes e um depois, a partir deste mês todo de dezembro de 2017”, afirma ao i o investigador Steven Forti.