Irlanda do Norte. Um conflito adormecido que o Brexit ameaça desenterrar

Hipótese de constituição de uma fronteira física com a República da Irlanda pode colocar em risco o processo de paz irlandês e reverter o Acordo de Sexta-Feira Santa, que pôs fim a três décadas de confrontos entre nacionalistas e unionistas

Durante trinta longos anos, unionistas e nacionalistas irlandeses foram protagonistas de um dos mais violentos conflitos civis dos tempos da Guerra Fria. Em causa esteve o estatuto constitucional da Irlanda do Norte, sendo que os primeiros, maioritariamente protestantes, defendiam a manutenção da integração no Reino Unido, e os segundos, católicos, pugnavam pela união do território com a independente República da Irlanda.

Os confrontos fizeram perto de 3600 mortos e deixaram feridas 50 mil pessoas, entre 1968 e 1998, e só terminaram com o Acordo de Belfast – ou Acordo de Sexta-Feira Santa – alcançado em abril de 1998, e referendado por irlandeses e norte-irlandeses em maio desse ano, que instituiu a constituição de um parlamento em Belfast e a desmilitarização dos grupos paramilitares, e definiu que o futuro constitucional da Irlanda do Norte teria de ser decidido pelos cidadãos.

De uma forma até surpreendentemente positiva, o acordo permitiu que a arena onde durante anos se digladiaram as duas forças fosse transferida das ruas para a assembleia, e abriu caminho à consolidação do Sinn Féin e do Partido Social Democrata e Trabalhista (SDLP) – do lado nacionalista –, e do Partido Democrático Unionista (DUP) e do Partido Unionista do Ulster (UUP) – do lado unionista –, como principais representantes políticos das duas causas.

Os nacionalistas irlandeses, com o Sinn Féin à cabeça, nunca deixaram de lutar por uma Irlanda unida e pelo fim do “domínio britânico” na ilha, mas a mudança de paradigma trazida pelo compromisso de 1998, aliada à implementação bem-sucedida da política de fronteira aberta acordada entre Reino Unido e República da Irlanda, e consolidada a par do exemplo igualmente próspero da experiência europeia de Shengen, reduziram drasticamente a exequibilidade da sua causa.

Mas a decisão dos britânicos de abandonarem a União Europeia, formalizada através do referendo de 2016, pode vir, no entanto, a alterar decisivamente o statu quo da ilha e reverter um processo pacífico que, embora triunfante, continua psicologicamente assente em alicerces frágeis. Isto porque o divórcio entre o Reino Unido e o clube europeu resultará, desde logo, na instituição de uma fronteira terrestre entre a Irlanda do Norte e um Estado-membro da UE. Uma inevitabilidade que, para além das incontáveis implicações práticas e económicas – nos dias que correm, a linha de separação de 499 quilómetros é, em alguns pontos, praticamente indistinguível e é cruzada diariamente por mais de 35 mil pessoas –, caso seja solucionada com a reedificação de uma “hard border” entre as duas Irlandas, arrisca-se a colocar em risco a possibilidade dos irlandeses exercerem sozinhos o seu direito à autodeterminação e ao estabelecimento de uma Irlanda unida, consagrada no Acordo de Belfast.

“A insistência do governo britânico em arrastar a Irlanda do Norte para fora da UE, contra o desejo expressado pela sua população [56% votaram pela permanência no referendo], vai enfraquecer a integridade e o estatuto do Acordo de Sexta-Feira, pondo em causa aquele direito”, explicava Jemma Dolan, deputada do Sinn Féin em Westminster, numa entrevista recente ao “SOL”, antes de apresentar a proposta dos nacionalistas católicos: “O Sinn Féin acredita que a única abordagem credível passa pela atribuição de um estatuto especial ao norte, dentro da UE, que permitiria à ilha da Irlanda permanecer, como um todo, dentro da organização”.

A sugestão do partido de Dolan não merece o apoio dos partidos unionistas da Irlanda do Norte e, para azar da deputada e do Sinn Féin, o DUP faz parte da solução encontrada pelo Partido Conservador, de Theresa May, para compensar a perda de maioria tory no parlamento britânico, após as eleições antecipadas de junho, pelo que tem uma palavra a dizer nas negociações entre Londres e Bruxelas.

Se dúvidas existissem sobre tal facto, elas foram dissipadas quando há cerca de duas semanas os conservadores unionistas bloquearam a proposta de May para a fronteira, que passava pela manutenção do alinhamento da Irlanda do Norte com a legislação europeia, alicerçado num estatuto regulatório e comercial distinto do resto do Reino Unido, criado para impedir o estabelecimento de uma fronteira rígida. A irredutibilidade da líder do DUP, Arlene Foster, fez cair um acordo entre o executivo britânico e a Comissão Europeia, que só foi ultrapassado em cima da meta, depois de May prometer não colocar em causa a “integridade constitucional e económica” do Reino Unido.

Se é verdade que o desejo de Londres continua, no entanto, orientado para a uma solução de “soft border” entre Irlanda Norte e República da Irlanda – resta saber como –, o regresso do debate político irlandês a temas próximos daqueles que os levaram a carregar armas durante trinta anos também o parece ser. Num artigo de opinião publicado no “Guardian”, o jornalista Malach O’Doherty escrevia que todos os atos eleitorais na Irlanda do Norte são “verdadeiros plebiscitos à fronteira”, pelo que é expectável que, até março de 2019 – data em que o Reino Unido abandonará oficialmente a UE – unionistas e nacionalistas dispensem cada vez mais tempo da sua atenção a convencer os norte-irlandeses sobre os méritos das suas propostas para a linha de divisão territorial, conscientes da relevância que aquela terá para o futuro da Irlanda do Norte e das aspirações de ambos os lados da contenda. E o desenrolar deste jogo de convicções tem tudo para desenterrar fantasmas antigos.