Há anos que, na Islândia, a legislação fala em pagamento igual para trabalho igual e, apesar de todos os progressos reconhecidos, que colocam o país no primeiro lugar do ranking de género do Fórum Económico Mundial desde 2008, o parlamento decidiu que havia chegado a altura de fazer ainda mais, aprovando uma lei que impusesse multas às empresas que não cumpram a paridade de salários entre géneros. Esse “ainda mais” entrou em vigor no dia 1 de janeiro, tornando a Islândia o primeiro país a legalizar o pagamento igual.
Para já, a lei ainda só se aplica a empresas com 25 ou mais trabalhadores. Mas essas vão agora precisar de obter um certificado do governo de que estão a cumprir com as políticas de igualdade de salários. As que não conseguirem, isto é, as incumpridoras, terão de pagar coimas.
Num parlamento em que quase metade dos deputados são mulheres, a nova legislação passou com votos a favor do governo de centro-direita e da oposição. E apenas dois deputados se abstiveram.
“Penso que as pessoas estão a começar a perceber que este é um problema sistemático que temos de combater com novos métodos”, afirmou à Al JaziraDagný Aradóttir Pind, membro da direção da Associação Islandesa dos Direitos das Mulheres.
A lei chega numa altura em que o país volta a ter uma mulher no cargo de primeiro-ministro, o que é apenas uma coincidência, pois Katrin Jakobsdóttir, líder do Movimento Esquerda-Verde, só chegou ao poder no final de novembro, depois de o seu partido ter sido o segundo mais votado nas eleições antecipadas convocadas pelo seu antecessor, Bjarni Benediktsson, acusado pelo próprio pai de ter violado repetida e ciclicamente a enteada de 12 anos.
Katrin Jakobsdóttir assume assim o poder depois de dois primeiros-ministros demissionários, já que o antecessor de Benediktsson, Sigmund Gunnlaugsson, também tinha resignado ao cargo em abril de 2016, depois de se ver envolvido no escândalo dos Panama Papers.
Líder de um partido ecologista de esquerda, antimilitarista e feminista, a atual chefe de governo assumiu a tarefa de conseguir trazer estabilidade política ao país com uma coligação que é um desafio, pois inclui um partido de centro-direita (Partido Progressista, PP) e um de direita (Partido da Independência, PI). Ainda para mais porque o seu partido nem sequer é o maioritário num elenco com 12 ministros – tem três, tal como o PP, e são os conservadores, com cinco, os mais representados.
É, como explicou o gabinete da nova primeira-ministra em comunicado, uma coligação que pretende trazer “um novo tom” à política islandesa. Entre as suas prioridades está melhorar a já muito boa política de igualdade de género na Islândia, o investimento nos cuidados de saúde, na educação, nos transportes. Jakobsdóttir também quer reduzir as emissões de dióxido de carbono a zero em 2040, uma das medidas a implementar para transformar a Islândia numa referência em termos de ações de combate às alterações climáticas, com metas mais ambiciosas que aquelas que foram estabelecidas no Acordo de Paris, de 2015.
Objetivos ambiciosos que começam com a lei que entra agora em vigor e que se destina a garantir que o país cumpre o objetivo, traçado pelo seu governo, de erradicar a diferença salarial entre homens e mulheres até 2020.
Bernie Sanders, que disputou com Hillary Clinton a corrida à nomeação democrata para candidato a presidente dos Estados Unidos, saudou no Facebook a legislação islandesa como um grande exemplo a seguir pelos EUA: “Devemos seguir o exemplo dos nossos irmãos e irmãs na Islândia e exigir já pagamento igual para trabalho igual, independentemente do género, etnia, sexualidade e nacionalidade. Enquanto combatemos os esforços republicanos para reverter os direitos das mulheres, é importante não perder de vista que o nosso verdadeiro objetivo é progredir e alargar os direitos das mulheres.” Os Estados Unidos figuram no lugar 49 na lista de género do Fórum Económico Mundial, onde Portugal aparece na 31.a posição.
Aparências ou realidade
Mas se é certo que, em termos gerais, a Islândia parece um case study para estudos de género, há quem não partilhe desse estado geral de orgulho nacional. As mulheres que compõem o primeiro grupo de hip hop feminino islandês, as Reykjavinkurdaetur (filhas de Reiquiavique), garantiam no mês passado, numa entrevista ao site da TV5Monde, que o conto está longe de ser de fadas, denunciando um sistema de dominação masculina onde a igualdade é apenas aparente.
Em outubro de 2016, milhares de mulheres (num país com uma população de 333 mil pessoas) encheram a praça Austurvollur, em Reiquiavique, saindo do emprego duas horas e 22 minutos mais cedo, representando os quase 30% de diferença nos salários praticados para homens e mulheres. Por cada 10 coroas islandesas ganhas por um homem, a mulher ganha apenas 7,2 coroas nas mesmas funções. As mulheres norte-americanas ganham em média 7,7 dólares contra dez dólares dos homens, e os EUA estão apenas no 49.o lugar na referida lista de igualdade de género.
O assédio sexual e a violência contra as mulheres provam isso mesmo: que, apesar das aparências, ainda há muito caminho a percorrer. A Islândia tem a maior taxa de violações per capita da Europa, de acordo com as estatísticas do Eurostat. Um estudo de 2010 da Universidade da Islândia dava conta de que 30% das mulheres com idades entre 18 e 80 anos afirmavam ter sido fisicamente agredidas pelo menos uma vez e 13% que já tinham sido violadas ou sofrido uma tentativa de violação.
Em 2013, um estudo de Hildur Antonsdóttir e Thorbjorg Gunnlaugsdóttir, na altura ligadas à Universidade da Islândia, chegou à conclusão que, dos 189 casos de violação investigados pela polícia entre 2008 e 2009, apenas 21 acabaram com uma condenação por violação. E isto para não contar o número de casos que acabam por não ser denunciados pelas mulheres, por medo ou vergonha.