“É o entardecer. Já ardem janelas na patine negra das casas. As bocas do metro despejam para as ruas operárias a torrente dos trabalhadores, cansados de um dia em Paris; e a neve indecisa vem flori-los de pétalas brancas: as jóias dos pobres que duram o tempo de um olhar.”
Esta prosa límpida como água das correntes de montanhas altíssimas é de Urbano Tavares Rodrigues.
Um jornalista extraordinário. Um escritor sem mácula.
Paris.
Mas Paris sem ser por acaso. Paris de António Nobre, o Anto da torre de Coimbra, “essa paisagem triste triste a cuja influência minha alma não resiste”, como escrevia o poeta.
Havia o carrossel inquieto do anoitecer nas palavras de Urbano.
A reportagem ficou como um exemplo do jornalismo literário.
António Nobre em Paris contado por Urbano Tavares Rodrigues apareceu nas páginas do “Diário de Lisboa” do dia 8 de janeiro de 1955.
Raramente algo podia ter sido mais inteiro.
“Rua Racine n.o 2, a sua primeira morada emParis, hoje Hotel des Étrangers. Ainda os rostos queridos o obsidiavam. Ali escreveu emocionadamente a Alberto de Oliveira, suposta alma gémea; ali pensou em Margarida, a sua Margarette, que ele deixara em Coimbra – a virgem ao pé do Mondego. Ser-lhe-ia fiel, perguntava o exilado consigo?”
Ah! O Mondego.
Pois… essa paisagem triste triste…
António Nobre escreveu “Só” em Paris, em 1892.
O livro mais triste que se escreveu em Portugal nasceu em França, junto ao Sena, já nessa altura noutra das moradas do poeta, na Rue des Écoles n.o 42.
Era a Pensão de Madame Laïlle.
Pela primeira vez que entrou no seu quarto, teve uma epifania: na parede, dependurado, um quadro representa a fundação da monarquia portuguesa. Sente-se intimidado com a aparição subitânea.
Ele, que era um homem de sensações profundas. E de mágoas ainda mais profundas.
Paris há de doer-lhe por dentro até á fragilidade dos ossos.
Escreve sobre o desamparo, sobre a desilusão. A vida é em tropel e atropela. Não existe aquela solidariedade tão sua, tão da sua Torre de Anto, onde reunia os amigos, as tertúlias.
Só!
Urbano De novo Urbano: “Nobre, o adolescente que não podia amadurecer, debate-se, solitário, com a dor de viver, com a saudade física do sol, do amparo familiar, do mar que ele sulcara na barca do moreno Gabriel. Os literatos não souberam lê-lo, os doutores de Coimbra reprovaram-no, os estudantes truculentos magoaram a sua fina sensibilidade mas a sua lembrança vai, não obstante, para os choupos magrinhos e corcundas, para o luar alvadio das noites portuguesas, para as Marias e para os Manuéis, para os honestos cavalheiros que levam aos ombros o pálio nas coloridas e piedosas procissões.”
Carta a Manuel:“Queres noticias? Queres que os meus nervos falem?/ Vá! dize aos choupos do Mondego que se calem…/ E pede ao vento que não uive e gema tanto:/ Que, enfim, se sofre abafe as torturas em pranto,/ Mas que me deixe em paz! Ah tu não imaginas/ Quanto isto me faz mal! Pior que as sabatinas/ Dos ursos na aula, pior que beatas correrias/ De velhas magras, galopando Ave-Marias,/ Pior que um diamante a riscar na vidraça!/ Pior eu sei lá, Manuel, pior que uma desgraça!”
António Nobre foi um poeta extraordinário, tantas vezes malquisto, tantas vezes abandonado e ignorado, atirado para uma Paris que ele não queria verdadeiramente.
Estuda de manhã – licenciar-se-á em Ciências Políticas na École Libre des Sciences Politiques –, vai às aulas à tarde.
De vez em quando, um teatro.
“Se o dinheiro não chega, se Anto está triste, tão triste que não pode ver ninguém, nem sequer a sua sombra nas paredes do quarto, vagueia pelas ruas estreitas da sua eleição, os ‘cabelos caídos, a cara de cera, os olhos ao fundo’. Saudades! Que saudades tem ele das estrelas que moravam no firmamento português. Mas aos domingos sacode a melancolia: vai tomar os ares de Neuilly.”
António Nobre alimenta o seu “spleen”, essa palavra mágica que significa todos os estados negativos das almas sensíveis.
E que é chique em Paris.
Ah! “O Spleen de Paris” de Baudelaire.
Urbano Tavares Rodrigues segue os seus passos, tantos anos mais tarde, conta que praticou esgrima, uma esgrima desintoxicante, e vai comungar religiosamente do silêncio da beleza dos museus.
“Nobre continua a morar na Rue des Écoles, ‘chez Madame Laïlle’. Está quase na miséria e sente-se abandonado. Finalmente, em janeiro de 1895, licencia-se. Ei-lo apto a singrar na vida. Um novo ciclo principia. Que confusão! Que complicação! O bacharel da quimera tornou-se doutor. Será brevemente cônsul sem consulado. Quer trabalhar, quer ganhar dinheiro, quer deixar de ser um peso para a família, pagar as dívidas. Qual?! Paris não consente. Nem traduções, nem emprego, nem lições. De nada lhe vale o exame.”
Só.
Poucos livros terão tido um título tão firme.
Poucos livros terão tido um título tão autêntico.
Poucas palavras tão curtas terão tido tanta coisa para dizer.
Os pulmões degradam-se.
Regressa a Portugal cuspindo pela boca o sangue das hemoptises.
“O seu aspecto alarma, apavora: os lábios sem cor, o andar arrastado, o peito ofegante. António Nobre, que nunca hesitara outrora em proclamar a tísica da alma, luta animosamente por esconder a dos pulmões. A tuberculose ainda inspira pavor. Os egoístas fogem do tísico, os cobardes temem-lhe os bacilos.”
Voltou a Paris, enternecido e solitário.
“Ele ainda acredita na cura, quer acreditar, mas uma voz interior, insidiosa, diz-lhe em segredo que aquela é a hora da despedida…” Só.